Infância

Infância

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Guilhotinas, Pelouros e Castelos


Às vésperas do vestibular da Universidade Estadual do Piauí, continuo sem entender o porquê da seleção, enquanto leitura obrigatória, de algumas obras literárias.

Sendo o processo de seleção estressante, cruel, discriminatório e intolerante - tadinho do pré-vestibulando que cometer um erro sequer! -, considero uma falta de sensibilidade sobrenatural a indicação de autores como Álvares de Azevedo e Mário de Sá-Carneiro. Não pretendo desmerecer ou mesmo questionar a capacidade artística dos respectivos escritores. Seria loucura, irresponsabilidade desmedida, não reconhecer a força inocente do melhor representante da segunda geração da poesia romântica brasileira. Seria também estupidez menosprezar a técnica e a versatilidade do poeta português.

A questão é: Manuel Antonio Álvares de Azevedo morreu aos 20 anos de idade. De tão egocêntrico e pessimista, deixou de lado as drogas, a vida boêmia e as doenças sexualmente transmissíveis para entregar-se à morte, noiva apaixonada e fiel que finalmente o libertaria do tédio.

A questão é: Mário de Sá-Carneiro, aos 26 anos, inadequado e disperso cometera suicídio. Estricnina e champanhe bastaram para que pudesse finalmente mergulhar no sonho e no delírio.

Esclareçam-me: apresentar a jovens tensos, pressionados pela família e pela sociedade, a possibilidade de uma morte precoce, expor a biografia de artistas deprimidos, exaltando-lhes a genialidade, servirá mesmo para quê?

Os contos de Noite na Taverna são tão sinistros, violentos e debochados. Os poemas do livro Dispersão tão tristes, amargurados e sombrios. Nossos alunos tão preocupados em corresponder às expectativas. Papais e mamães tão ansiosos em realizar os próprios desejos. Escolas e professores tão preocupados em estampar pelas ruas do planeta a inteligência e a felicidade do adolescente aprovado em todos os concursos, quando na verdade são tão poucos os aprovados porque não há vagas suficientes.

O que há, insisto, é uma despreocupação com a auto-estima de meninos e meninas. E se eu fracassar? Questiona o aluno de famosa escola particular de Teresina. Tornar-me-ei bandido, necrófilo, canibal? Fugirei da realidade, reduzindo a vida a uma seqüência de surtos que me levarão ao suicídio?

E se (?).

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

De repente Jeosá


Jeosá nada mais é do que um estúpido desejo de não ser. Em seu cantinho, encolhidinho, recolhidinho, deseja apenas encarar o espelho e não mais enxergar os óculos, o cavanhaque, as sobrancelhas espessas, os olhos castanhos, o nariz desmedido, a boca de um lábio só e a tristeza que mais parece uma claridade esquivando-se pelas frestas do rosto fatigado.

Ao assistir a uma palestra espírita sobre depressão, aprendeu que é importante, ao acordar, questionar: estarei vivo ou morto? Como o espírito não reflete, basta procurar o espelho mais próximo, recomendava – divertindo-se – o palestrante. Por isso mesmo há uma espingarda de canos duplos paralelos sobre a cama. O professor prefere não arriscar. Ao explodir a cabeça e lambuzar de massa encefálica o quarto espera mesmo destruir qualquer possibilidade de resistência – e existência.

Há sombras divertindo-se no chão e nas paredes e no guarda-roupa e na escrivaninha. Vozes sussurrando gritos de apoio imoral. Uma vontade de agarrar a espingarda de canos duplos paralelos e apertar o gatilho de uma vez. Mas. Mas. Mas. E se morrer não significar necessariamente desfalecer? E se logo em seguida despertar e ao despertar perceber que ele próprio é luz e que acabara de destruir a redoma que o protegera até então de tudo e de todos?

A incerteza do sono. Reminiscências da infância. Medo do inferno enquanto materialização dos pensamentos mais sinistros. Jeosá aproxima-se da cama. Novecentas e noventa e nove velas murchas – respiração contida –, testemunhas da imprudência do professor.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Fantasia


Quisera eu permanecer estático assim como tu és sempre estático. Quisera eu não sofrer porque o gesso não sofre. A tinta não sofre. O olhar pintado em preto e branco nada mais é do que um falso olhar pintado em preto e branco. Quisera eu ter sempre as mãos quietinhas e resignadas. E as pernas entrelaçadas feito uma borboleta que nunca fora casulo e sequer desejou – um dia – voar.

Quisera. Eu. Não ser. Modelo psicanalítico de todas as pulsões. Quisera. Alienado. Desejar apenas o que está ao alcance das mãos estáticas. Dos desejos estáticos. Das pernas – borboletas verdes – também estáticas. Quisera eu não delirar. Não questionar. O que é o delírio? Fantasia que já não se concebe com tal. Neurose? Psicose? Deus sabe. A ciência sabe. Freud – limitado e preconceituoso – jamais será capaz de explicar. Ai, mitos, a arrogância apenas delimita e generaliza e enquadra.

E ninguém sabe de nada. Ninguém representado aqui enquanto alegoria. Ciência. Religião. Capitalismo. Visão maniqueísta e ultrapassada. Época em que o homem era bom. Época em que o homem era mau. E o bem e o mal - expressão antitética – jamais paradoxal – do homem inferior – porém egocêntrico – e universal.

Gutural. E rouco. E louco. E pouco atento àquilo, concepção conceitual, que se convencionou chamar de felicidade. Porque a felicidade nada mais é do que a fantasia de todos os homens. Nós. E enquanto fantasia jamais, materializada no real, será possível de nos fazer sentir realmente felizes. Felizes? Como se a experiência há tanto séculos já não proclamasse: insatisfação.

domingo, 2 de setembro de 2007

Ânsia


De quando se faz necessário álcool. De quando se faz necessário sofrer. De quando se faz necessário insônia. De quando quando se faz necessário tudo enquanto. De quando tudo enquanto vem à cabeça. De quando enquanto se pensa em tudo enquanto nada se revela tanto. De quando portanto tudo entanto enquanto álcool nada. De quando se faz necessário em algo e em tudo. Vazio.
De quando se faz necessário enxergar. De quando se faz necessário gritar. De quando ao enxergar e gritar se faz necessário calar. De quando ao calar e gritar se faz necessário enxergar o grito e o silêncio e o que há enquanto dor. De quando se faz necessário dor porque há dor. Ardor. Vazio.
De quando se faz necessário correr. De quando se faz necessário morrer. De quando se faz necessário conter o utópico desejo de morrer e viver. De quando se faz necessário ser e não ser. De quando se faz necessário ter tudo aquilo enquanto tudo aquilo que nunca se quis. De quando se faz necessário no entanto em tantos sonhos despertar. Vazio.
De quando se faz necessário partir. De quando se faz necessário sorrir. De quando se faz necessário sentir e sorrir e partir. De quando se faz necessário no entanto enquanto tantos sorrisos e lágrimas e quantos desejos e bocejos insones. Sentir. De quando se faz necessário cair na real. De quando se faz necessário tudo enquanto portanto. Vazio.
De quando se faz necessário o grito. De quando se faz necessário o silêncio. De quando se faz necessário a dor. De quando se faz necessário a morte. De quanto se faz necessário a vida. De quando nada se faz necessário. De quando tudo se faz necessário. De quando nada enquanto tudo. Vazio.



quarta-feira, 25 de julho de 2007

Vampiro às Avessas


Estavam todos ali. Sequer perceberam a ausência de Ariosvaldo. Nem mesmo um comentário distraído (indevido) a respeito do único filho dos donos da casa. Curiosamente, os donos da casa, excelentes anfitriões, não se preocuparam em explicar (lamentar) o paradeiro do adolescente.

E Ariosvaldo, em seu desespero, tentando, a qualquer custo, revelar-se. Gritava. Esperneava. Agredia o vidro, já sujo do sangue das mãos e dos pés e da cabeça. Em vão. O som não era capaz de fatigar o vácuo que havia entre ele e o mundo. E as manchas e as cicatrizes deixadas no espelho não eram visíveis do lado de lá.

Ariosvaldo não era mais gente. Ariosvaldo era reflexo. Da mesma forma que não enxergava o reflexo daquela gente, aquela gente já não o enxergava enquanto gente. E não sendo gente, não lhe restara sequer a possibilidade de refletir. O improvável reflexo do reflexo.

Se os sentidos não estivessem tão apurados. Se não fosse capaz de absorver cada detalhe do jantar. Se o aniversário de casamento dos pais não surgisse enquanto lembrança familiar demais. Se. Se. Se. Seria mais fácil sujeitar-se à condição maravilhosa e absurda que o sujeitava e oprimia.

Subitamente. Explosão. Estilhaços. Apenas fragmentos do caríssimo ornamento de vidro que ocupava uma parede inteira da sala. Perplexos, os convidados abandonaram a casa. Sentadinhos, os pais de Ariosvaldo. Contemplando a efemeridade das coisas que amamos.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Dois Enterros


O velório acontecia no Cemitério da Fraternidade. Apenas três pessoas encaravam o caixão. Como o frei Barbosa, amigo íntimo da família, recusara-se a comparecer ao singular evento, a esposa, o filho da esposa e Antonio João eram os únicos ali.

Malditas bactérias anaeróbias. O empresário resmungava a cada minuto. O que pretendiam? Devorá-lo por inteiro? Imaginariam que, acomodado, não as enfrentaria? E seu dinheiro, não serviria sequer para pagar o algoz que lhe deceparia a perna?

Antonio João sentia-se como um soldado recém chegado do campo de batalha. Conseguira sobreviver, mas a que custo? Passar o resto da vida numa cadeira de rodas não fazia parte do plano. Muito menos assistir àquele estúpido ritual funerário.

A esposa e o filho da esposa organizaram tudinho. A perna de Antonio João não seria atirada aos porcos. Nadinha, nadinha de economizar. Embalsamar. Velar. Sepultar. Conforme o amor e a intensidade do amor que sentiam pelo homem que, embora orgulhoso e arrogante, sempre cuidara bem da família. Embalsamar. Velar. Sepultar. Conforme a estranha necessidade de não perder o controle da situação.

Antonio João, percebendo que não convenceria a esposa e o filho da esposa a recuarem diante do absurdo do absurdo espetáculo que promoviam, impôs uma condição: o ataúde, pequenino, permaneceria fechado o tempo inteiro. Não suportaria o vexame da situação. Só não compreendia o que era de fato mais humilhante, se ter a perna enterrada sem o corpo, se ter, no futuro, o corpo enterrado sem a perna.

terça-feira, 5 de junho de 2007

O Louco



O Louco entrou sem pedir licença. Em sua loucura não precisava mesmo pedir. Estranho seria se mantivesse todas as formalidades de outrora. A educação e o estranho hábito de tratar os outros respeitosamente em nada se adequavam aos recentes delírios que o expulsaram de casa e do emprego e dos amigos.

O Louco não percebeu o espanto daquela gente. E se percebesse não compreenderia. Estariam assustados por que ele estava ali ou por que já não o reconheciam ou por que a sua aparência feito espelho anunciava o quão decadente e mesquinha é a humanidade?

O Louco encarou todos eles. Agrediu os homens. Mandou para o inferno as mulheres. Cantou. Dançou. Praguejou. Tentou inutilmente abraçar as crianças e os cachorros. Cuspiu nas taças. Vomitou na porcelana. Aquietou-se. Dormiu.

segunda-feira, 30 de abril de 2007

Do Ensino Religioso na Sala de Aula


O que dizer do Ensino Religioso em pleno século XXI? Como me posicionar a respeito se a respeito do assunto já há tantos posicionamentos e desdobramentos e confusões? Que linha de pensamento desenvolver se nas escolas, ainda em sua grande maioria católicas, encontramos as mais variadas crenças e religiões?

O que precisa ser esclarecido: O professor não está ali para catequizar. Não cabe a ele dogmatizar. É papel do professor de Ensino Religioso, independente de suas convicções, questionar, problematizar. E nunca fazer da aula um discurso ideológico em prol de uma religião ou outra.

E não é fácil para o professor. Muito menos para o aluno. Vestimos tamanha couraça costurada de verdades, que nos surpreendemos, freqüentemente, promovendo empolgadas palestras de conscientização, para não dizer imposição de nossas próprias fantasias.

Recentemente, ao conversar com o professor Marcelo, percebi, o quão difícil e maravilhoso é o seu trabalho. Primeiro: nenhum aluno ficará reprovado em Ensino Religioso. Ou seja, vai ter criatividade assim no “inverno” para despertar interesse na criança e no adolescente, já que não paira sobre os mesmos o fantasma das notas baixas. Segundo: Os temas debatidos são tão atuais e polêmicos, a descoberta da sexualidade, para citar apenas um exemplo, que muitas vezes a própria família surge enquanto obstáculo, no sentido de não querer permitir, são as palavras de alguns pais, “que certas conversas cheguem aos ouvidos dos filhos”.

Como se o mundo não estivesse aí para ensinar... como se não fosse papel da escola e dos educadores e da família orientar... como se precisássemos, mais uma vez, fechar os olhos, quando se faz necessário enfrentar.

terça-feira, 17 de abril de 2007

Desmitificação



Porque é preciso chorar. Ai do homem que não consegue chorar. Ai. Ai. Ai. Chorar. Falemos sério. Aquele aperto no peito já é coisa do passado. O barato são as lágrimas. Deixemos de conversa fiada. Papo besta de panela prestes a explodir. Para que tanta pressão? Opressão danada. Como se fôssemos vampiros. Catando lixo na escuridão. Maldição.

Porque é preciso chorar. Não estou falando de bebês chorões. Chorar. Feito machos. Os machos também choram. Também há lágrimas escorrendo e umedecendo barbas. Bigodes. Cavanhaques. E as mulheres – pasmem! – não nos consideram fracotes ou bobalhões. Sério! Aceitam-nos enquanto humanos.

Porque é preciso chorar. Precisamos piscar com um certo conforto. Lágrimas. Faz-se necessário alimentar a córnea. Lágrimas. Nada de microorganismos invasores. Lágrimas. E por aí vai. Seremos nós – homens - tão idiotas assim? Chorem! Por deus, chorem! Digam que é em prol da visão. Que seja. Mas chorem.

Porque é preciso chorar. Deixemos de ser raposa. Se não alcançamos as uvas é por uma incapacidade qualquer. Se não sou capaz de enfrentar não sou capaz de enfrentar e pronto. Se me envergonho de nem sempre corresponder às expectativas me envergonho de nem sempre corresponder às expectativas e pronto. Mas afirmar que homem não chora ou não deve chorar é uma grande bobagem. É não aderir à revolução.

terça-feira, 10 de abril de 2007

O Primeiro Beijo




Como se o corpo, liderando um motim,

Ousasse, finalmente, enfrentar a alma.

Como se Deus, percebendo que nem

Raios e trovões e poeira

Nos conseguiriam espantar,

Desse o braço a torcer.

domingo, 8 de abril de 2007

Platônico (?)






A TI




Conheço grandes homens
Pequenos homens
Frustrados
Frustrações
São poetas desgraçados
São mulheres idealizadas
E nunca
Nunca
O tão sonhado amor
São versos fantásticos
Belas estrofes
E sempre
Sempre
A mesma dor
Mas conheço-te também
E questiono-me angustiado
Serei poeta?
Grande (?)
Pequeno (?)
Serei frustrado também?
Teus olhos
Uma ilusão
Teu rosto
A tranqüilidade
Teu corpo
A satisfação
Não tocá-la
Minhas mãos
Não sentí-la
Meus lábios
Não possuí-la
Meu coração
De que vale tanta poesia?
Sofro (sonho) tanto por ti!
Palavras?
Insignificantes.
Dizer não é justo lutar por ti
É tão blasfemo – encarar Deus
E duvidar do seu poder!
Dizer tentarei esquecer
É tão mesquinho – fechar os olhos
Quando é preciso encarar!
Ilusão
Tranquilidade
Satisfação
(Há contristação no ocaso)
Ilusão – olhos tão claros (caros)
Tranquilidade – ao teu lado
Satisfação – mulher ideal
Tocar e não tocar
Sentir e não sentir
Possuir e não possuir
Até quando?
Frustração (?).

quarta-feira, 28 de março de 2007

terça-feira, 27 de março de 2007

domingo, 25 de março de 2007

Ébrio



Novamente a loucura

O ciúme que angustia

O medo de perder

Ou ter perdido

E despertar (do sonho)

E descobrir (o pesadelo)

De ela não ser

Ou ser (o castigo)

O que não redime

Pune

O que não ama

Aterroriza

O que não satisfaz

Destrói

De ela não ser

Ou ser (o anjo)

O que mitiga

Enobrece

O que encanta

Afama

O que purifica

Incendeia.

segunda-feira, 19 de março de 2007

Jeosá



Difícil pensar em alguma coisa quando se tem uma espingarda de canos duplos paralelos arregaçando-lhe a boca. Nem mesmo as lágrimas que lhe umedeciam os olhos, foram capazes - naquele instante - de despertar no professor de literatura algum tipo de idéia - não fosse a idéia de que no instante seguinte estaria morto. E como - tolice! - considerar a morte, se após o disparo, gelado e resignado e inerte.

Planejara tudinho. Inclusive apoiar-se na cabeceira da cama - o móvel fora arrastado até a parede - para que o corpo repousasse em colchão macio. Simulara, dezenas de vezes, a explosão. Chegara mesmo a antecipar - ignorante - a posição em que seria encontrado. Não agradava a imagem do cadáver - braços e pernas desengonçados - feito marionete esquecida no palco pelo manipulador. E menos ainda a condição indigente do bêbado que, sufocado pelo próprio vômito, agoniza enquanto, enojada, a humanidade brinca do faz de conta de nada entender.

Morreria e pronto. Estéril. Num piscar de olhos. Morreria e pronto. Aliviada, a mãe desmancharia a mancha de sangue – última lembrança do filho – e não mais lastimaria. A maldita corrente genealógica de fracassos – cobra robusta e traiçoeira – libertaria os lefontenes.

quinta-feira, 15 de março de 2007

Estrondo



Concebo-me pedra

Na impossibilidade de ser

Poeira

Sem eira

Nem beira

Por enquanto

Poço perfurado a facão

Então

Senão

Enganação.


Aula da Saudade




Se o professor de literatura não for capaz de estabelecer um vínculo entre aluno, obra e autor, as aulas, acreditem, serão medíocres e desestimulantes.

Antonio José Fontinele


Aula de Literatura: enquanto alheamento do espírito, reflexão.

Antes de começar a digitar, vieram-me à lembrança grandes escritores que convivem comigo desde o dia em que descobri na leitura a mais perfeita de todas as fugas. Compreendam: ler é ao mesmo tempo abandonar a mediocridade de todas as coisas e sentir na pele e na alma o quão medíocre somos os homens. E não poderia deixar de ser assim. Uma crônica literária. Metalinguagem pura. Intertextualidade do princípio ao fim.

Minha primeira (intensa) experiência literária aconteceu por volta dos doze anos de idade. Epifania. A biblioteca do SESC era o meu passeio de todos os dias. Assis Brasil. Fontes Ibiapina. Graciliano Ramos. Carlos Drummond de Andrade. Gabriel Garcia Marques. Mário Vargas Losa. O Inconfundível Machado de Assis. Devo a eles a minha paixão pela palavra e a minha embriaguez (ah, estados alterados de consciência!). Devo a eles personagens, enredos e versos que fizeram de mim professor de literatura. A minha missão: divulgá-los. A minha missão: desmitificá-los. A minha missão: arrancar a máscara de velhos chatos imposta por professores velhos e chatos (quanta crueldade com os meus escritores!). A minha missão: fazer do cotidiano instrumento de compreensão da realidade. Mimese. Não importa onde moro. Não importa quem eu (penso que) sou. Quantos Romeus não estarão assistindo às minhas aulas. Quantas Capitus não estarão agora mesmo lendo este desabafo. Quantos Riobaldos não estarão confusos porque não compreendem ou aceitam sentimentos tão profundos. Quantas frustrações ou conquistas não se confundem no instante em que uma página é vencida. Catarse.

Professor, o que quer dizer epifania? Leia Clarice Lispector.

E Mimese, significa o quê? Aristóteles.

Catarse já é molecagem, professor. Satisfação.

Edgar Allan Poe, em suas Histórias Extraordinárias, conta-nos a aventura de um homem que sofria de catalepsia (caracterizada por extrema rigidez muscular). Ou seja, o indivíduo ao desmaiar mais parece que morreu. Ora, se no conto de Poe, uma sepultura é metodicamente construída para que o homem não seja enterrado por engano, aqui mesmo em Parnaíba, litoral do Piauí, no bairro São José, o defunto sentou no caixão durante o velório. Dizem que não ficou um vivente. Nem os parentes do Lázaro. Já Fontes Ibiapina, em seu Palha de Arroz, nos apresenta a louca Genoveva (Peixe Podre). Casada com Pau de Fumo, a mulher enlouquece após a morte da filha. Disso eu sei. Mas não sei (eu que vivi no Bairro Nova Parnaíba) quem era de fato Tia Laura. Muito menos conheço a história do Papagaio do Cu Pelado. Por que este senhor usava algodões enfiados no nariz? Por que aquela mulher tão pequenina ficava irritada quando gritávamos Tia Laura, cadê o bode? E, finalmente, como desvendar os mistérios do Porto das Barcas sem ter lido Beira Rio, Beira Vida? Então. Então.

Fantástico




Quando José Felipe acordou – naquela manhã de janeiro de 1975 - o que havia de José Felipe era apenas a cabeça (E o pescoço!). Denotativamente falando, não restara nadinha do corpo. Sobre a escrivaninha, os objetos de sempre. Arrumadinhos. Nada de sangue, ou qualquer sinal de luta. Tudo muito organizado. Como se o crânio repousasse toda a vida ali.

Até que os membros não fizeram tanta falta. Doentinho, chegara a dizer que seus membros eram inferiores e inferiores. Galhofeiro, o professor brincava ao se referir ao pênis que, segundo ele, não chegara a ser um rapaz viril.O tronco também não era lá essas coisas. Camões servindo feito uma luva: “Que mal me tirará o que eu não tenho?”.

O que incomodava de verdade – José Felipe explicava aos curiosos que não saíam do quarto – era a sensação dos pés e das pernas e das coxas e das mãos e dos antebraços e dos braços. Quase rolara algumas vezes por causa de movimentos bruscos e inconseqüentes. Algumas vezes lançava o seguinte questionamento: só porque não vejo minhas mãos não significa que não estejam aqui. Perturbação.

O professor morreu em fevereiro. Algumas impossibilidades fisiológicas tornaram sua existência algo no mínimo extravagante. Mas a fortuna que a família imaginava lograr da ciência jamais chegou. Naquela fúnebre manhã carnavalesca o que havia na escrivaninha era apenas um espaço de área finita onde outrora havia o gênio de José Felipe.

Jeosá e a Escuridão




Há na escuridão o incontido desejo de ser luz. Assim blasfemava Jeosá enquanto riscava mais um fósforo. Se mil velas no quarto, apenas uma queimava. Porta fechada. Janela fechada. De onde viria o sopro? De alguma fresta, talvez. Ou do próprio infernoportões escancarados em lamentação - , ou de qualquer fantasma zombeteiro e desocupado, ora ocupando-se em tarefas inúteis.

Parnaíba era assim mesmo. Consolava-se. Enquanto chuva, negrume. Paciência. Impacientava-se. O cheiro da pólvora, insuportável. Preferia não deitar. Fosse defunto, tudo bem. Mas não repousaria, alucinado, no próprio velório.

Quem esbanjaria tempo pranteando-lhe a matéria? Joane não apareceria. E de que vale morrer, se nem mesmo os mortos desejam a minha companhia? Mais um fósforo. Frustração. Apenas sombras contorcendo e retorcendo e gemendo a dor de todas as dores que somente a solidão é capaz de aprontar.

Se luz, seriam outros (os sentimentos). Mas a chama titubeava bruxuleante. Sentadinho, entre o guarda-roupa e a escrivaninha, Jeosá deslocava a cabeça para frente e para trás, enquanto os joelhos tocavam o peito de tão diminuidinho que estava.

Quando a mãe, por volta das dez horas da manhã, entrou no quarto - novecentas e noventa e nove velas acesas -, Jeosá não existia mais. Esparramado na cama, ao lado de uma espingarda de canos duplos paralelos, havia um homem. Mas aquele homem não era o professor de literatura. O professor traspassara o espelho feito espírito de luz.

quarta-feira, 14 de março de 2007

Pequena história triste com um final feliz




Houve uma época – e que época! – em que certo governador, em que certo reitor, tiveram a brilhante idéia de eliminar, enquanto prova de vestibular para admissão na Universidade Estadual do Piauí, as disciplinas Redação e Literatura. Fácil – ou difícil - de entender: o candidato poderia disputar vaga em qualquer curso, de qualquer área, sem demonstrar habilidades de escrita, leitura e interpretação textual. Qualquer indivíduo que tivesse a hiper, mega, super capacidade de pintar corretamente o gabarito – tchan!- poderia matricular-se – desde, é claro, que alguns idiotas menos preparados no quesito “marque a alternativa A, ou B, ou C, ou D, ou E cometessem vacilos terríveis.

Enquanto professor de literatura fiquei indignado. Se não bastassem as brincadeiras dos alunos e demais professores – meu emprego estaria ameaçado!, precisei conviver, por pouco tempo felizmente, com a loucura da contramão social que nos era apresentada. Enquanto a promoção de incentivo à leitura tornava-se uma preocupação mundial, o Piauí perdia a oportunidade de envolver-se em tão bela viagem cultural. Surrealista era o raciocínio de nossas autoridades. Niilista, a decisão – tão precipitadinha! – tomada.

Passado o susto, o alívio. Não fui demitido, nem os candidatos “nivelados por baixo” – é assim que se diz nos corredores dos cursinhos. Passado o susto, a sensatez. Enquanto houver vestibular, haverá uma desculpa para ler – e escrever! Quantas grandes paixões não nasceram do acaso! Feito o menino pré-vestibulando obrigado a ler Fernando Pessoa... Nunca mais o abandonou. Carregou na bagagem por toda a vida o poeta português e todos os seus heterônimos que pôde conhecer e desvendar.

Servil




Não sou sequer a sombra

Do que pensas que eu sou

Serei talvez a ilusão do poeta

A doce lua branca que encanta o mar

Um mero símbolo de possibilidades tão fúteis

Não há graça ou desgraça em tudo isso

Sou mortal

E como tal

Posso brincar de morte

Que sorte

Não é ela a mulher do capuz

Nem é dela a severa foice

Eu estou encapuzado

Severo sou eu

O contador de histórias

Que tanto mal faz aos seus alunos

Por que se deixar levar

Acreditar nas possibilidades do sonho

Como se possível fosse – sonhar

E desejar

E desde já

Encarar homem deus e diabo

Diacho

Que seja inferno

Inverno ou verão

Que seja

Que eu seja

Pobre triste amargo lúcido

Lúcifer

Ferir-se

Ir-se

Se

Tu fosses eu

Eu

Que já fui tantas vezes

Tu.

Complexo de Jeosá




Jeosá nem mais sabia o que fazer. Ou mesmo o que fizera. Seria uma maldição? Não mais os olhos castanhos encarariam os olhos castanhos? Como é possível – terror! – enxergar cabelos, pescoço, mãos, braços, tórax e não descobrir um reflexo sequer do próprio rosto?

Fazia dois dias desde a última vez em que considerara a vida um maravilhoso passeio de aqui e acolá. Chegara a cogitar a possibilidade de um desvio da luz – um grau que fosse! – provocando caos em todos os espelhos do mundo. Bobagem. Se todos os rostos refletidos ali. Se apenas o seu desaparecera feito a sombra traquinas de Peter Pan.

O mais curioso é que os outros, cujos rostos enxergava muito bem, também enxergavam o seu rosto. Sabia disso porque a mãe preparou-lhe o café praguejando como todos os dias de todos os anos. Porque no ônibus ninguém colaborou para que descesse tranqüilamente. Porque na escola os alunos não interromperam a bagunça e a coordenadora cobrou as notas da prova de literatura. Mas então o quê?

Alimentava-se numa boa. Escovava os dentes sem nenhum problema. Penteava os cabelos. Ajeitava as sobrancelhas. Coçava o nariz. Tudo como antigamente. Desde que não houvesse uma superfície refletora por perto lhe anunciando o vazio. A escuridão. Chegara a exagerar nas caretas diante do espelho. Abria e fechava a boca. Dentes expostos. Língua nos lábios e no céu da boca e nos próprios dentes. Mas a imagem não se comovia. Insistia em permanecer ausente.

O corpo do professor foi encontrado às dez da manhã. Sobre a cama uma espingarda de canos duplos paralelos. De terno preto e gravata preta e sapatos pretos arrumara-se para o suicídio. Com o disparo, a cabeça explodiu. Estourou. Expluiu. A mãe não conteve o desespero: onde foi parar o rosto de Jeosá?

Purgatório




Rodolfo agarrara-se aos braços da cadeira. As pernas entrelaçadas às pernas da cadeira. Depois de duas horas ainda não acreditava nos últimos acontecimentos. Em alguns momentos de rara precipitação chegara a agredir o próprio corpo na esperança de despertar daquele sonho imbecil.

Logo ele que nunca pensara em voar. De aviões ou qualquer maluquice de inventar de brincar de pássaro queria mesmo era distância. Agora estava ali. Desde o início da madrugada tentando convencer os sentidos da existência de uma força gravitacional que oprimia todos os corpos menos o seu corpo.

Ainda bem que não se desfizera daquela cadeira velha. A velha cadeira de seu pai. Pesada. Tal qual a mão que arremessava correias de couro contra o seu couro de menino. Cogitara atear-lhe fogo. Quando o velho morreu, a sepultura envolveu-lhe o corpo, mas era naquele móvel onde o fantasma repousaria. Não imaginava sentar ali um dia. No colo de seu pai. Muito menos lhe segurar os braços com tanta força. Os braços fortes de seu pai.

O que estaria acontecendo de fato? Que força mística mítica sobrenatural provocaria tamanha confusão? Mais parecia um daqueles prisioneiros norte-americanos naquelas matérias sensacionalistas sobre o corredor da morte. Meu deus. Quando a alavanca seria acionada? Quando a descarga elétrica acabaria com a agonia?

Não havia agonia. Mas isso Rodolfo não sabia. Não sabia também que nada mais poderia atingi-lo. Rodolfo estava morto. O fantasma era ele. Prisioneiro da cadeira de seu pai. Precisara morrer para enfrentá-la. Mas ao enfrentá-la sentira-se mais vivo do que quando estivera vivo. Assustado. Mas vivo. Confuso. Mas vivo. Se abrisse os olhos, enxergaria as velas. Certamente, não desgrudaria os olhos do caixão. Havia velas em torno de um caixão. E em torno das velas e do caixão havia pessoas. E em torno das pessoas a sombra onipresente do pai.


terça-feira, 13 de março de 2007

Lancelot


Ser herói sem o ser

E ser

Reflexo distorcido da alma

Não compreender

Guinevere fez de mim o que não sou

Eu

Breve agonia enquanto o vômito não vem.



Martírio



O que fazer

Se é imensurável a dor?

O que fazer

Se inferno céu ou qualquer coisa?

O que fazer

Se não sou deus diabo nem sou humano?

O que fazer

Se tu és vida ou morte ou redenção?