Infância

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sexta-feira, 26 de outubro de 2007

De repente Jeosá


Jeosá nada mais é do que um estúpido desejo de não ser. Em seu cantinho, encolhidinho, recolhidinho, deseja apenas encarar o espelho e não mais enxergar os óculos, o cavanhaque, as sobrancelhas espessas, os olhos castanhos, o nariz desmedido, a boca de um lábio só e a tristeza que mais parece uma claridade esquivando-se pelas frestas do rosto fatigado.

Ao assistir a uma palestra espírita sobre depressão, aprendeu que é importante, ao acordar, questionar: estarei vivo ou morto? Como o espírito não reflete, basta procurar o espelho mais próximo, recomendava – divertindo-se – o palestrante. Por isso mesmo há uma espingarda de canos duplos paralelos sobre a cama. O professor prefere não arriscar. Ao explodir a cabeça e lambuzar de massa encefálica o quarto espera mesmo destruir qualquer possibilidade de resistência – e existência.

Há sombras divertindo-se no chão e nas paredes e no guarda-roupa e na escrivaninha. Vozes sussurrando gritos de apoio imoral. Uma vontade de agarrar a espingarda de canos duplos paralelos e apertar o gatilho de uma vez. Mas. Mas. Mas. E se morrer não significar necessariamente desfalecer? E se logo em seguida despertar e ao despertar perceber que ele próprio é luz e que acabara de destruir a redoma que o protegera até então de tudo e de todos?

A incerteza do sono. Reminiscências da infância. Medo do inferno enquanto materialização dos pensamentos mais sinistros. Jeosá aproxima-se da cama. Novecentas e noventa e nove velas murchas – respiração contida –, testemunhas da imprudência do professor.