Infância

Infância

domingo, 28 de dezembro de 2008

O Aniquilador


Acaso

Aquela era a segunda vítima. Em apenas um mês. Se a primeira, uma adolescente magrinha, fora assassinada com quatro tiros certeiros: ora na cabeça ora no peito ora na cabeça ora no peito, o comerciante de 43 anos repousará ileso no fundo do Igaraçu. Mais cedo ou mais tarde, devorado pelos peixes – podridão só! – renascerá, eis a possibilidade, em uma margem qualquer, ou mesmo na rede de algum pescador.
Denílson continuará matando. Homens. Mulheres. Crianças. Ricos. Pobres. Bonitos. Feios. E a cada assassinato uma assinatura própria. Não cometeria o principal vacilo de um serial killer: determinar um padrão. Permitir o estabelecimento de um perfil psicológico. Alguns estudiosos sugerem que, inconscientemente, o psicopata quer ser capturado. As pistas, muito mais que desafios, seriam instrumentos deixados ali para facilitar o trabalho da polícia. Por isso mesmo, para driblar o inconsciente, o professor de literatura não afrontará os investigadores. Quanto mais aleatória for a escolha, quanto mais variados forem os métodos, menor a probabilidade de um crime ser relacionado ao outro. E assim, em intervalos de tempo imprecisos, seguirá feito um caçador bem treinado, tal qual o mais temido dos predadores, alimentando-se de tantos e quantos parnaibanos conseguir abater. Nulificar.

A adolescente magrinha

A menina estudava no Colégio das Irmãs desde o maternal. Por sorte as freiras reativaram o ensino médio. Não suportava a idéia de uma transferência para outra escola. O centenário do Colégio Nossa Senhora das Graças era o seu próprio centenário. Apegara-se tanto àquelas paredes que parecia ter testemunhado a construção de cada uma delas.
Agora só restava desfrutar os próximos três anos. Entrar para a universidade representaria a impossibilidade de estar ao lado dos amigos. Não acreditava naqueles discursos apaixonados que antecedem a separação. Sabia que nada seria como antes. Apenas fragmentos de lembrança.

O comerciante de 43 anos

O armazém ficava no cruzamento da Humberto de Campos com a Francisco Correia. O homem trabalhava sozinho. Quando precisava descarregar mercadorias mais pesadas contratava os estivadores que viviam fumando e jogando conversa fora pelas calçadas do centro comercial. Durante 14 anos estivera ali. Inclusive aos sábados. Só não trabalhava aos domingos, reclamava a esposa, porque não apareceria um cliente para espantar as moscas. Se não. Se não.
Fora sempre assim. Louco pelo trabalho. As refeições diárias eram apenas interrupções necessárias. Dormir: um desperdício. A vida não era ruim. Possuíam uma casa maravilhosa. Passeavam aos domingos. Não entendia o porquê de tantas queixas. Divertia-se ao ouvir as lamentações daquelas mulheres. Afinal, apenas mendigavam um pouco mais de atenção. Não relacionavam a vida tranqüila à sua ausência. Lastimavam como se acreditassem na possibilidade de estarem sempre juntos.

A adolescente magrinha

Aceitara, felicíssima, a carona. As amigas morreriam de inveja. Quem diria, logo ela, sentadinha ao lado do famoso professor Denílson. O magnífico contador de histórias. Nunca esqueceria, graças a ele, a aleijada Janet, de Robert Louis Stevenson. Muito menos o gato preto, de Edgar Allan Poe. Agora estava ali, nervosíssima! A imagem, estampada na mochila, da RBD Roberta, cantava uma música romântica. Parnaíba nunca estivera tão bonita. Havia em tudo a estranha sensação de nunca mais.

O comerciante de 43 anos

Não abria o armazém há três semanas. Sequer saía de casa. Nunca estivera depressivo. Também jamais sentira o quão importante era a família. A esposa – fortaleza! – assumira todas as responsabilidades. Mal sabia ela que em apenas um mês o inferno revelar-se-ia ainda mais poderoso.
O comerciante acordou disposto naquele dia. Sentou-se à mesa para tomar café. Devorou o cuscuz de arroz quentinho. Percebeu a dor – quantas olheiras! – no rosto pálido da esposa. As idéias, ainda embaraçadas pelo sofrimento, tentavam reagrupar-se feito soldados após o tiroteio. Mas estava ali, pronta para a próxima batalha. E ele? Suportaria mais uma baixa? Não. Indubitavelmente.

Acaso

Matar pai e filha não fazia parte do plano. Caos. Imprevisibilidade. Denílson na cadeia. Quando estava prestes a cometer o próximo assassinato, o quebra-cabeça fora montado pela polícia. Restava apenas compreender a motivação dos crimes. Estaria o professor apaixonado pela esposa do comerciante? Matou porque o comerciante descobrira a identidade do assassino da filha? A mulher seria a próxima vítima?
Não. Não. Não. Apenas um acidente fixando lógica na incerteza do abismo.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Infantilidade



Há alguns anos passear pelas ruas de Parnaíba – pilotando uma barra circular vermelha (sem garupa!) – era uma tarefa cotidiária prazerosa. Afinal, transportar as namoradas no confortável (ironia!) varão da bicicleta rendia lá suas recompensas: cheirinhos e beijinhos no cangote da moça... roçar de joelhos no bumbum macio, nas coxas macias... (sensação maravilhosa de não dever nada a ninguém).

Senti-me invadido por essas lembranças graças a um encontro com certo aluno do ensino médio. Ao entrar em um ônibus, na Miguel Rosa (atualmente moro em Teresina), fui recepcionado com o seguinte comentário: professor ganha pouco mesmo... cadê o carro, Ajosé? O carro estava na oficina. Revisão de final de ano. Foi o que respondi. Rapidamente. Precisamente. Indignado. Não com o questionamento do aluno. Com o medo que me invadiu a alma de ser confundido, naquele instante, com alguém que precisa “pegar” ônibus todos os dias. Devo, inclusive, ter acrescentado: espero receber logo o MEU CARRO. Tom de saudade na voz: não vejo a hora de estar, novamente, com o MEU CARRO. Um pouco de esperança: amanhã, se Deus quiser, a oficina entrega o MEU CARRO.

O que eu não sabia, até então, incomoda-me demasiadamente. Em que(m) me transformei? Em que pedacinho do universo ficou perdida a humildade, sustentáculo do que havia de melhor em mim? Desde quando me tornei arrogante? Não será arrogância, prepotência, atrevimento – demência! -, sentir vergonha de estar aqui ou acolá? Estarei ensinando para os meus filhos tamanha imbecilidade? Serei professor de lições perigosas como as que assimilei, mesmo que subliminarmente?

Ainda não sei. Sei bem muitas outras coisas. Tipo: não desperdiçarei tempo precioso da minha vida reprimindo o que há de verdadeiro em mim. E o que há de verdadeiro em mim é aquela criança que perambulava pelas ruas do bairro Nova Parnaíba. Gritando. Cantando. Amando cada tiquinho de sonho materializado em experiências inesquecíveis. É aquela criança da Vieira da Cunha, sempre indignada com qualquer possibilidade de preconceito e discriminação.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

JEOSÁ


A impossibilidade de TER
O que se não pode SER
A trivialidade de SER
O que se não pode TER.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Ataúde


O espelho reflete o reflexo do reflexo do poeta
O poeta não enxerga a si mesmo
O que se imagina ser o poeta é apenas sombra

Distorcendo as paredes alvas que amparam o altar
Umidade escorrendo - entrededos – pelos corredores vazios
Sinos de angústia anunciando a derradeira procissão.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

A Ciência da Paixão



Por que invadir um apartamento e reduzir à condição de refém a mulher amada? Qual a explicação para o comportamento da adolescente que desiste de viver após o termino do relacionamento? Por que desperdiçar tanta energia na tentativa de aprisionar quem já não pretende desfrutar a nossa companhia? Se a paixão é apenas um dos muitos artifícios utilizados pela natureza para que continuemos procriando, não seria menos cansativo, psíquica e fisicamente, identificar imediatamente um novo parceiro para acasalar?

Não é tão simples assim. Principalmente se o “outro” nos abandonou. O sofrimento é inevitável. Prolonga-se por vários meses. Principalmente se alimentado pela baixa auto-estima. Enquanto o indivíduo não elaborar por completo o luto, dificilmente compreenderá o término do relacionamento. Desejo de morte, auto-piedade, vingança, amor e ódio, enquanto confusão mental, podem, inclusive, levar o “apaixonado” à depressão. O médico e escritor Moacyr Scliar resume bem a questão: “as paixões reprimidas, contrariadas ou mal-sucedidas adoecem as pessoas”.

Para alguns pesquisadores a depressão tem seu lado positivo: chegou o momento de encarar-se a si mesmo. Momento de enfrentar o problema e preparar-se para o recomeço. Momento de reorganizar o cérebro já que a produção de dopamina aumenta consideravelmente logo após o término do relacionamento. Dopamina sim! A paixão desperta as mesmas áreas cerebrais responsáveis pela sensação de bem-estar. O que sentimos quando olhamos para a fotografia de quem amamos é o mesmo que sentimos quando estamos diante daquela comida saborosa. Amar, pensam alguns cientistas, é apenas a motivação para alcançar o que se deseja. E quando o objeto do desejo parece inatingível, o organismo, ironicamente, produz uma maior quantidade de dopamina, aumentando ainda mais a frustração. É o cérebro que primeiro nos força a lutar pelo resgate da relação, para que depois, resignados, entendamos que nem todos os sonhos serão materializados.

Entre a frustração e a resignação, a ameaça. Nos mamíferos, por exemplo, a ausência da mãe (objeto desejado), provoca pânico nos filhotes. Seria imprudência não acreditar que os seres humanos carregam resquícios mentais dessa experiência. Furiosos, confusos e assustados podemos, se não cometer suicídio, destruir aquilo que mais cobiçamos. Infelizmente o amor não anula o ódio. Infelizmente amor e ódio são bem menos contraditórios do que se supõe.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Freud Explica!


Duas obras literárias indicadas, enquanto leitura obrigatória, pela Universidade Federal do Piauí, servirão de roteiro para a discussão que ora proponho.

Enquanto Gil Vicente nos apresenta uma visão maniqueísta e preconceituosa do ser humano, O. G. Rego de Carvalho, bem mais sensato, abandona a caricatura vicentina e constrói personagens complexos e imprevisíveis. Afinal, não se pode mais conceber uma visão dualista, limitada e superficial de homem. Ninguém, por mais que se esforce, conseguirá ser, durante a vida inteira, a personificação do Mal. Muito menos a alegoria do Bem. Há em cada um de nós, acompanhando-nos sempre, um anjinho e um diabinho. Vozes insistentes – convincentes! -, despertando sentimentos, manipulando comportamentos.

Na peça teatral Auto da Barca do Inferno tudo é muito simples. O indivíduo, de acordo com suas atitudes em vida – atitudes que permanecem grudadas, feito parasitas, em cada personagem -, embarcará para o Paraíso ou para o Inferno. Obedecendo a critérios estabelecidos pela Igreja Católica, Gil Vicente manda para a “Ilha Perdida” corruptos, materialistas, arrogantes, exploradores, mentirosos e hereges. Não há aprofundamento psicológico. As personagens são julgadas e condenadas de acordo com a noção convencional do que é certo e do que é errado.

Bem diferente é a visão de mundo do escritor piauiense. Para O. G. Rego de Carvalho: “Somos todos inocentes”. Exemplifico: Raul, protagonista da obra, mesmo apaixonado por Dulce, envolve-se com outras mulheres. Uma delas, Pedrina – a filha do sacristão -, engravida do rapaz. Estamos na primeira metade do século XX. O neto de Joaquim Ribeiro é apenas cria de uma sociedade patriarcal. Namorar Maria do Amparo e transar com Pedrina não lhe desestrutura o coração. Raul aprendeu, desde cedo, que mulher foi educada para cuidar da casa, do marido e dos filhos.

Se Lindemberg, o assassino de Eloá, fosse uma personagem criada por Gil Vicente, antecipar o seu destino não seria uma tarefa árdua. O mais novo habitante do Inferno, certamente ocuparia um lugar de destaque ao lado do Satanás. Eloá – a vítima! -, repousaria nos braços de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Como se fôssemos apenas um recorte daquilo que de fato somos, protestaria O. G. Rego de Carvalho.

domingo, 5 de outubro de 2008

Linha de Passe


No cinema. Apenas. Seis. Pessoas. Na tela. Transbordando. Talento. Walter Salles e Daniela Thomas. A cidade, em ritmo de eleição, não pode parar para assistir a um filme. Reflito. Ainda mais se a produção é nacional. Ironizo. E com tantos shows – nacionais! – acontecendo por aqui não sobra um tostãozinho para tamanha extravagância. Concluo.

Meus alunos assistirão “ao”! Grito ali mesmo na sala. Mas é um grito silencioso. Desses gritos que permanecem na alma. Feito o “Último Número”, de Augusto dos Anjos: “Bradei: — Que fazes ainda no meu crânio?/E o Último Número, atro e subterrâneo,/Parecia dizer-me: “É tarde, amigo!”.

Não, não é tarde. Discordo do poeta. Centenas de adolescentes acotovelando-se. Loucos por um melhor lugar. Ansiosos pelo espetáculo. E nem precisarei oferecer pontos na prova. Estarão ali, sentadinhos e atentos, porque é preciso, sentadinhos e atentos, encarar o quão difícil é ser – humano.

Ao final, perguntarão. Por que Linha de Passe, professor? Respondam vocês mesmos. Por que a vida é como um jogo de futebol? Por que na vida precisamos saber jogar para sobreviver? Por que viver não é para qualquer um? Por que mesmo os que sabem jogar podem não ser escolhidos? Porque os brasileiros vivemos em uma linha fronteiriça imaginária. Confusos. O apito do juiz amedronta. Afinal, vislumbramos a possibilidade da repressão. Há muitos uniformes afirmando o quão errados nos comportamos. Há toda uma torcida adversária ameaçando-nos com pragas que nos conduzirão ao erro. Ou não.

Enquanto os alunos não vêm. Somos. Apenas. Seis. Enquanto as vozes de meninos e meninas não ameaçarem o vazio. Seremos. Apenas. Seis. Mas quantos seis de nós divulgarão o filme! Quantos seis multiplicarão por seis que multiplicarão por seis e mais seis e mais seis! E de seis em seis, eis um milhão.

Um milhão de apertos. No peito. Porque o filme é tenso. Deixa-nos tensos. A qualquer momento a desgraça. Paira sobre cada personagem a mão ameaçadora do destino. O destino de cada um de nós. Enquanto, nos limites de uma linha de passe, rogamos ao bom deus que não estejamos impedidos.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Precoce


Não pretendo

Satisfazer

Em mim

A estranha necessidade

Nesta idade

De amar o desenho infantil

Projeção de afetos

Transferência de valores

Quando o que se deseja

É o sonho indizível da abnegação.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Esquizofrenia



Não costumo escrever sobre questões políticas. Mesmo sabendo que o próprio ato de escrever já se constitui em atitude política. Forçada. Conceitual. Subliminar. Inconsciente. Sou daqueles seres humanos quietinhos que ficam ainda mais pequeninos quando o assunto é política, religião e futebol.

Fui candidato apenas uma vez – época da universidade – porque me convenceram de que eu era a pessoa ideal para assumir a secretaria de cultura do diretório acadêmico. E – principalmente! – teria liberdade para desenvolver meu trabalho longe da mesquinhez, sombra poderosa que nos acompanha enquanto administradores do bem público. Bobagem. Consciência tardia. Depois da vitória é que percebi que nem mesmo os artistas escapolem daquela gente, de estrutura perversa, capaz de tudo para alcançar e permanecer no poder.

Por que então romper o silêncio depois de tantos anos? Muito simples – ou por demais complexo! -. Se até recentemente a esfericidade do comportamento humano, metaforizado por medos, angústias e desejos representavam para mim uma espécie de pulsão – que não era de vida e muito menos de morte -, disparador do que a intelectualidade mambembe rejeita e chama de inspiração, hoje – grito em confissão! -, a entrevista de “respeitadíssimo” político piauiense para um programa de televisão local desencadeou uma revolução violenta em meus pensamentos e princípios. Se não atirei pedras no aparelho de tevê foi porque o notebook também estava ao alcance das mãos.

Que a polícia federal tem trabalhado bastante é um fato. Que nossos “homens ricos” têm dado bastante trabalho para a polícia federal também é um fato. E de fato o que se percebe é que a corrupção vem se tornando – agora é oficial! – o principal crime federal e estadual e municipal e, acrescentemos, visceral. O banqueiro Daniel Dantas foi preso. Foi solto. Foi preso. Foi solto. Comentário do senador piauiense: se ele é bandido, pelo menos é um bandido que gera emprego e renda. Comentário do senador piauiense: as atitudes do delegado que investiga o caso são atitudes esquizofrênicas.

De acordo com a CID-10, “os transtornos esquizofrênicos são caracterizados, em geral, por distorções fundamentais e características do pensamento e da percepção e por afeto inadequado ou embotado”. Mais adiante: “Dessa forma, o pensamento se torna vago, elíptico e obscuro e sua expressão em palavras, algumas vezes incompreensível”. O Aurélio também esclarece: “a esquizofrenia é uma afecção mental caracterizada pelo relaxamento das formas usuais de associação de idéias, baixa afetividade, autismo e perda de contato vital com a realidade”.

Perda de contato vital com a realidade! Tadinho do delegado e de todos nós. Daqui a pouco surge um novo Simão Bacamarte (peço ao leitor que entre em contato com a obra O Alienista, de Machado de Assis) e o Brasil, transformado em hospício, internará aqueles que não se sujeitam à enganação. O raciocínio será o seguinte: se os corruptos correspondem à maioria, ser corrupto é ser normal.

Louco é o juiz que manda prender. É o delegado que investiga. É o homem que exige os seus direitos. É o telespectador que não se deixa ludibriar. É o repórter que denuncia e por isso mesmo será processado. Loucura é invadir a casa do senhor Celso Pitta e filmar toda a operação. É não aceitar suborno. É algemar banqueiros e empresários. É deixar de lado a ficção e a criação de personagens – bem mais humanos! – para desabafar.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Réquiem


A caminho do velório de H. Dobal – o carro abarrotado de alunos -, questionamentos. Professor, “H” é de Henrique? Não, é de Hindemburgo. Risos. Menino é capaz de brincar até com o nome do poeta. Não me incomodei porque sabia que Dobal – divertido – já sorrira várias vezes da singularidade do próprio nome. Professor, ele era o melhor poeta piauiense? Para boa parte da crítica, sim. Mas existem escritores como Torquato Neto, Mário Faustino e Da Costa e Silva que permanecerão sempre em primeiro lugar nesse ranking desmedido, estapafúrdio e inútil. E digo mais: o artista, imortalizado pela arte que produziu, sempre será. Não importa se o melhor ou o pior. O engajado ou o desengajado. O universal ou o regional.

Na Assembléia Legislativa, uma surpresa. Uns vinte gatos pingados velavam o poeta. Professor, pensei que ele fosse mais conhecido. Suspiro. Silêncio. Desculpa qualquer: é que estamos na hora do almoço. Ainda vem muita gente. Muita gente. Escritor parece que só é valorizado depois de morto! Não é verdade, professor? A imprensa está aqui. Acham mesmo que estariam filmando o velório de um estranho? O Kaio tem razão, pessoal. E é transmissão ao vivo! Enquanto a discussão a respeito da popularidade de H. Dobal prosseguia, limitei-me a provocar a memória e a resgatar lembranças escassas dos poucos momentos em que estive com Dobal.

Massageando as mãos geladas do poeta e tentando reconhecê-lo, escondidinho sob a máscara estampada da morte, só conseguia pensar no sorriso espontâneo e no olhar emocionado que nem mesmo a doença fora capaz de destruir. Muitas vezes fiquei intrigado com a energia positiva daquele homem que percorria a cidade em sua cadeira-de-rodas, deslizando macio pelos corações de cada um de nós, distribuindo, além de versos maravilhosos, simpatia e compreensão.

Afinal, estávamos ali. Salão Nobre da Assembléia Legislativa. Resignados. Declamando poemas. Contemplando o que ainda havia de matéria em H. Dobal. Os sentidos apurados. Percebendo, sinestesicamente, não o abafado das velas, mas “os campos do verde plano/todo alagado de carnaúbas”.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Renúncia


Enquanto tu fores carne

Simplesmente carne

E osso

E fosso

E não houver – em ti - sequer um resquício

De alma

De calma.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Filhos do Carbono


Considerando a influência da cultura e da educação que transcendem o ser humano, “batendo”, “passando”, mas deixando marcas profundas, é importante ressaltar que a sociedade criticada pela Pitty, na música Admirável Chip Novo, é patriarcal, autoritária e narcísica:

Pense, fale, compre, beba

Leia, vote, não se esqueça

Use, seja, ouça, diga

Tenha, more, gaste e viva

Pense, fale, compre, beba

Leia, vote, não se esqueça

Use, seja, ouça, diga...

Uma sociedade contemporânea estruturada a partir da definição de gênero. Uma sociedade concebida a partir do momento em que o matriarcalismo pimitivo, caracterizado pelo poder “divino” da mulher em gerar filhos, foi substituído em conseqüência das novas tarefas assumidas por homens fortes, livres e sádicos: plantar, colher e guerrear, por exemplo.

Desde então, a mulher passou a ser considerada a frágil, a reprimida, a masoquista. Os verbos no imperativo (pense, fale, compre, beba etc.) constituem o discurso que se fortalece com o advento do Capitalismo. Discurso ideológico, apoiado em ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, máquina capaz de aprisionar, rotular e robotizar cada um de nós.

A autora chama atenção para o fato de que ao tentarmos nos adequar ao sistema, passamos a enxergar apenas o que o sistema permite que seja visto. E o que a Pitty estava fazendo no palco do Big Brother Brasil 8, interpretando justamente a música que agora nos orienta enquanto reflexão crítica da realidade? A resposta é simples: inaugurando seus mais novos óculos de robô.

O paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914) é que nunca pôde desfrutar das lentes capazes de corromper o mais nobre dos artistas:

O homem por sobre quem caiu a praga

Da tristeza do Mundo, o homem que é triste

Para todos os séculos existe

E nunca mais o seu pesar se apaga!

Morreu aos trinta anos de idade sem atingir o perfil de homem ideal. O sofrimento psíquico, simbolizado pelo pessimismo presente no conjunto da sua obra, foi gerado pela exclusão social. De uma família de senhores de engenho que não se adequou às transformações tecnológicas advindas do processo de industrialização, a inteligência invejável não bastou para que pudesse prosperar financeiramente.

Ao contrário da roqueira Pitty e de muitos artistas da atualidade, Augusto dos Anjos esteve sempre desconfigurado:

E eu sinto a dor de todas essas vidas

Em minha vida anônima de larva!

domingo, 13 de abril de 2008

Bullying


A expressão bullying (valentão) abrange comportamentos agressivos de um ou mais estudantes contra outro, numa relação desigual de poder. Intencional e repetitivo, esse comportamento que se manifesta sem motivo aparente, envolve o ambiente escolar numa atmosfera de medo e ansiedade.

Bullying virou uma espécie de sinônimo de violência escolar. Todo tipo de agressão, seja ela física ou verbal, com o objetivo de humilhar e ridicularizar encaixa-se no conceito. Mais grave ainda é perceber que os agredidos acabam sentindo-se culpados, porque são feios, gordos, etc.

Os alunos, vítimas da hostilidade que os acompanha, muitas vezes durante anos, poderão não superar o trauma, tornando-se adultos negativos, hostis e com uma baixa auto-estima.

Mesmo sendo um dos principais problemas, diante de tantos outros que permeiam a educação de crianças e adolescentes, a prática do bullying só começou a ser de fato estudada há pouco mais de dez anos. Segundo o médico Aramis Lopes: “A única maneira de se combater o bullying é através da cooperação de todos os envolvidos: professores, funcionários, alunos e pais. As medidas tomadas pela escola para o controle do bullying, se bem aplicadas e envolvendo toda a comunidade escolar, contribuirão positivamente para a formação de costumes de não violência na sociedade”.

Felizardo (2007) é incisivo ao afirmar que o bullying está presente em todas as escolas. A questão é que essa violência muitas vezes não é detectada. Ou porque a pressão é tamanha que ninguém, inclusive a vítima, ousa denunciar o agressor, ou porque a família e a escola negligenciam o sofrimento que pode levar o indivíduo a cometer suicídio. A morte enquanto única possibilidade de libertação.

Pesquisas realizadas recentemente no Brasil revelam um dado preocupante: O bullying ainda é desconhecido por muitos profissionais da educação, saúde e segurança (FANTE, 2008). O Centro Multidisciplinar de Estudos e Orientação sobre o Bullying Escolar, em estudo apresentado em 2007, revela que “a média do envolvimento dos estudantes brasileiros no fenômeno é de 45%”. Dado bastante preocupante já que situa o Brasil acima da média mundial.

Em relação ao Piauí, o que se percebe é uma carência ainda maior de informações e estudos a respeito do problema. Tanto a rede pública quanto a rede particular de ensino carecem voltar-se para um fenômeno que já alcança números epidemiológicos.

sábado, 5 de abril de 2008

A Fantástica História do Professor que Sonhava Sonhos


A existência é uma maravilhosa máquina faminta de sangue e de dor.

Apenas Jeosá, aos trinta e três anos de idade, parece não atentar para o espetáculo explodindo em fogos e sombras diante dos óculos embaçados. Por isso mesmo absorve – esponja mergulhada no vinagre -, cada palavra-punhal atirada contra o peito esquerdo – como se ali estivesse sepultado o coração.

Impossível alertar o professor de literatura, se o professor de literatura não reconhece a história da sua vida em nenhuma das centenas de leituras que devora. No máximo incorpora o papel de narrador observador e onisciente. Afinal, não há posição mais cômoda. Passear pelas angústias de mocinhos e bandidos, controlando cada passo, cada decisão, cada vitória, cada derrota, permite-lhe esquecer cada passo, cada decisão, cada vitória, cada derrota que o transformaram neste objeto insuportável de medo e desejo.

Apenas quando uma palavra-punhal atinge-lhe o vazio do peito esquerdo é que acorda, momentaneamente, do sonho-torpor que o aprisiona desde a infância. Bom seria não mais despertar. Por mais confusos e estranhos que sejam os sonhos, jamais alcançarão a realidade, enquanto manifestação perversa de todos os delírios. Porque não se acorda da realidade. Porque não dá para respirar aliviado e pensar: ainda bem que tudo não passou de uma realidade. Porquês. Porquês. Porquês.

domingo, 30 de março de 2008

Desacerto


Jeosá esteve cansado durante a vida inteira esteve cansado.

Jeosá resmungou e praguejou durante a vida inteira resmungou e praguejou. Jeosá sonhou e lutou e sofreu durante a vida inteira sonhou e lutou e sofreu. Jeosá também amou e acreditou e dançou durante a vida inteira amou e acreditou e dançou.

Ao abocanhar a espingarda de canos duplos paralelos não pensou em outra coisa que não fosse o maravilhoso espetáculo da libertação. Pela primeira vez deleitava-se com o gozo do gozo de que tanto ouvira falar. Todo o seu corpo estremecia feito arrepio enrugando-lhe a alma. Feito chocolate liquefeito na boca. Feito o prazer, enquanto pulsão, contorcendo-se na alma.

Por alguns instantes vacilou. Apertar o gatilho significava abdicar do encantamento que desfrutava e que imaginava não ser mais possível sentir. Ao mesmo tempo, sufocado pelas paredes amarelas do quarto e pelas lembranças que não o abandonavam jamais, sabia que a angústia permaneceria ao seu lado quando a realidade agredisse a porta daquela prisão: Jeosá ainda vive?

A possibilidade de resposta seria uma derrota. Sim. Estou. Vivo. Uma maldição. O que de pior pode acontecer ao encarcerado durante uma tentativa de fuga? Ser capturado quando já se vislumbra a claridade não fazia parte do plano. Jeosá ainda vive? Sim. Estou. Vivo. Frustração. Rastejar pela umidade do túnel e não colher os frutos da putrefação.

Jeosá ainda vive? Silêncio. Jeosá ainda vive? Sossego. Nem mesmo a mãe pôde gritar - sufocada pela paz que envolvia o cadáver do professor. Encarou o sangue. A morte. Encarou o filho. Agora que Jeosá já não tinha olhos pôde contemplá-lo como nunca fora capaz de fazer. Pôde beijá-lo e experimentar o sangue escorrendo pela garganta. Era Jeosá retornando para o caos de onde nunca deveria ter saído.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Poema escrito em um momento de delírio



De repente já não há o Tempo

O Tempo enquanto idéia do tempo que passamos juntos

Das horas-minutos-segundos entrelaçados

(um no perfume do outro)

Feito corpos imunes à decomposição

Tal qual gente que nunca morre

E vive a metáfora da satisfação.


De repente já não há o Espaço

O Espaço enquanto idéia do espaço que nos separa

Dos quilômetros-metros-centímetros de saudade

(um na ausência do outro)

Feito almas vagando no Inferno

Tal qual gente que sonha com o Céu

E vive a hipérbole do amor eterno.


De repente já não há o Ser

O Ser enquanto idéia do ser que quiséramos sentir

Das personalidades-singularidades-vazias existenciais

(Crer ou não crer?)

Feito Mentira que sufoca a Verdade

Tal qual Chapeuzinho que foge do Lobo

E vive a antítese da bestialidade.


sábado, 5 de janeiro de 2008

História de Humor


Incentivado pela sogra - e não me venham com piadinhas preconceituosas – recepcionei o ano de 2008 na Barra Grande. Havia poucas pessoas. Além da minha família, algumas outras famílias desejosas de um pouquinho de tranquilidade. Congestionamento (para quê?). Empurra-empurra (por quê?). Estacionar a quilômetros do evento (nem pensar!).

E pensar que a música mais estrondosa veio dos tambores tímidos de um Reisado que insiste em sobreviver. Não estou falando de AXÉ-REISADO, MC-REISADO, REISADO-POWER. Não! Não! Não! Nadinha de mega-produção. Muito menos tecnologia de última geração. Deparamo-nos apenas com uma geração incentivada por gente humilde cuja maior riqueza é a tradição. O que importa se as rimas são pobres? Substantivos rimando com substantivos arrancaram a faca, a foice, a facão lágrimas até então reprimidas.

Um pouquinho antes da ceia, reunimo-nos para a meditação. Todos sabíamos que um famoso humorista piauiense coordenaria a reflexão. Tamanha foi a surpresa quando o homem – eu não o conhecia pessoalmente, apesar de já ter assistido a muitos de seus espetáculos –, vestido de preto, aparentando cansaço e uma velhice bem mais velha (quarenta anos que nada!), conduziu a palavra, falando de esperança e de fé, quando o que menos se percebia em sua postura e em seu olhar era justamente fé e esperança.

A maravilhosa sina do palhaço. Sabedoria popular. Casa de ferreiro, espeto de pau. Enquanto todos ouviam, ele, sozinho no picadeiro, encontrava forças para não chorar. Mesmo sufocado pela angústia, discursava sobre a paz e sobre o amor, para que nos sentíssemos confortáveis. E eu questionando-me naquele instante: por que esse sorumbático João, tão grande e importante para a cultura de nosso estado, não consegue libertar-se da tristeza e da dor?

Ao final fui cumprimentá-lo. Desejei dizer-lhe muitas coisas. Exigir uma história engraçada qualquer. Apresentar-me. Pedir um autógrafo. Sei lá. Não sei. Apenas abracei-o e resmunguei sabe-se lá o quê.