Infância

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segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Freud Explica!


Duas obras literárias indicadas, enquanto leitura obrigatória, pela Universidade Federal do Piauí, servirão de roteiro para a discussão que ora proponho.

Enquanto Gil Vicente nos apresenta uma visão maniqueísta e preconceituosa do ser humano, O. G. Rego de Carvalho, bem mais sensato, abandona a caricatura vicentina e constrói personagens complexos e imprevisíveis. Afinal, não se pode mais conceber uma visão dualista, limitada e superficial de homem. Ninguém, por mais que se esforce, conseguirá ser, durante a vida inteira, a personificação do Mal. Muito menos a alegoria do Bem. Há em cada um de nós, acompanhando-nos sempre, um anjinho e um diabinho. Vozes insistentes – convincentes! -, despertando sentimentos, manipulando comportamentos.

Na peça teatral Auto da Barca do Inferno tudo é muito simples. O indivíduo, de acordo com suas atitudes em vida – atitudes que permanecem grudadas, feito parasitas, em cada personagem -, embarcará para o Paraíso ou para o Inferno. Obedecendo a critérios estabelecidos pela Igreja Católica, Gil Vicente manda para a “Ilha Perdida” corruptos, materialistas, arrogantes, exploradores, mentirosos e hereges. Não há aprofundamento psicológico. As personagens são julgadas e condenadas de acordo com a noção convencional do que é certo e do que é errado.

Bem diferente é a visão de mundo do escritor piauiense. Para O. G. Rego de Carvalho: “Somos todos inocentes”. Exemplifico: Raul, protagonista da obra, mesmo apaixonado por Dulce, envolve-se com outras mulheres. Uma delas, Pedrina – a filha do sacristão -, engravida do rapaz. Estamos na primeira metade do século XX. O neto de Joaquim Ribeiro é apenas cria de uma sociedade patriarcal. Namorar Maria do Amparo e transar com Pedrina não lhe desestrutura o coração. Raul aprendeu, desde cedo, que mulher foi educada para cuidar da casa, do marido e dos filhos.

Se Lindemberg, o assassino de Eloá, fosse uma personagem criada por Gil Vicente, antecipar o seu destino não seria uma tarefa árdua. O mais novo habitante do Inferno, certamente ocuparia um lugar de destaque ao lado do Satanás. Eloá – a vítima! -, repousaria nos braços de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Como se fôssemos apenas um recorte daquilo que de fato somos, protestaria O. G. Rego de Carvalho.

domingo, 5 de outubro de 2008

Linha de Passe


No cinema. Apenas. Seis. Pessoas. Na tela. Transbordando. Talento. Walter Salles e Daniela Thomas. A cidade, em ritmo de eleição, não pode parar para assistir a um filme. Reflito. Ainda mais se a produção é nacional. Ironizo. E com tantos shows – nacionais! – acontecendo por aqui não sobra um tostãozinho para tamanha extravagância. Concluo.

Meus alunos assistirão “ao”! Grito ali mesmo na sala. Mas é um grito silencioso. Desses gritos que permanecem na alma. Feito o “Último Número”, de Augusto dos Anjos: “Bradei: — Que fazes ainda no meu crânio?/E o Último Número, atro e subterrâneo,/Parecia dizer-me: “É tarde, amigo!”.

Não, não é tarde. Discordo do poeta. Centenas de adolescentes acotovelando-se. Loucos por um melhor lugar. Ansiosos pelo espetáculo. E nem precisarei oferecer pontos na prova. Estarão ali, sentadinhos e atentos, porque é preciso, sentadinhos e atentos, encarar o quão difícil é ser – humano.

Ao final, perguntarão. Por que Linha de Passe, professor? Respondam vocês mesmos. Por que a vida é como um jogo de futebol? Por que na vida precisamos saber jogar para sobreviver? Por que viver não é para qualquer um? Por que mesmo os que sabem jogar podem não ser escolhidos? Porque os brasileiros vivemos em uma linha fronteiriça imaginária. Confusos. O apito do juiz amedronta. Afinal, vislumbramos a possibilidade da repressão. Há muitos uniformes afirmando o quão errados nos comportamos. Há toda uma torcida adversária ameaçando-nos com pragas que nos conduzirão ao erro. Ou não.

Enquanto os alunos não vêm. Somos. Apenas. Seis. Enquanto as vozes de meninos e meninas não ameaçarem o vazio. Seremos. Apenas. Seis. Mas quantos seis de nós divulgarão o filme! Quantos seis multiplicarão por seis que multiplicarão por seis e mais seis e mais seis! E de seis em seis, eis um milhão.

Um milhão de apertos. No peito. Porque o filme é tenso. Deixa-nos tensos. A qualquer momento a desgraça. Paira sobre cada personagem a mão ameaçadora do destino. O destino de cada um de nós. Enquanto, nos limites de uma linha de passe, rogamos ao bom deus que não estejamos impedidos.