Infância

Infância

domingo, 28 de dezembro de 2008

O Aniquilador


Acaso

Aquela era a segunda vítima. Em apenas um mês. Se a primeira, uma adolescente magrinha, fora assassinada com quatro tiros certeiros: ora na cabeça ora no peito ora na cabeça ora no peito, o comerciante de 43 anos repousará ileso no fundo do Igaraçu. Mais cedo ou mais tarde, devorado pelos peixes – podridão só! – renascerá, eis a possibilidade, em uma margem qualquer, ou mesmo na rede de algum pescador.
Denílson continuará matando. Homens. Mulheres. Crianças. Ricos. Pobres. Bonitos. Feios. E a cada assassinato uma assinatura própria. Não cometeria o principal vacilo de um serial killer: determinar um padrão. Permitir o estabelecimento de um perfil psicológico. Alguns estudiosos sugerem que, inconscientemente, o psicopata quer ser capturado. As pistas, muito mais que desafios, seriam instrumentos deixados ali para facilitar o trabalho da polícia. Por isso mesmo, para driblar o inconsciente, o professor de literatura não afrontará os investigadores. Quanto mais aleatória for a escolha, quanto mais variados forem os métodos, menor a probabilidade de um crime ser relacionado ao outro. E assim, em intervalos de tempo imprecisos, seguirá feito um caçador bem treinado, tal qual o mais temido dos predadores, alimentando-se de tantos e quantos parnaibanos conseguir abater. Nulificar.

A adolescente magrinha

A menina estudava no Colégio das Irmãs desde o maternal. Por sorte as freiras reativaram o ensino médio. Não suportava a idéia de uma transferência para outra escola. O centenário do Colégio Nossa Senhora das Graças era o seu próprio centenário. Apegara-se tanto àquelas paredes que parecia ter testemunhado a construção de cada uma delas.
Agora só restava desfrutar os próximos três anos. Entrar para a universidade representaria a impossibilidade de estar ao lado dos amigos. Não acreditava naqueles discursos apaixonados que antecedem a separação. Sabia que nada seria como antes. Apenas fragmentos de lembrança.

O comerciante de 43 anos

O armazém ficava no cruzamento da Humberto de Campos com a Francisco Correia. O homem trabalhava sozinho. Quando precisava descarregar mercadorias mais pesadas contratava os estivadores que viviam fumando e jogando conversa fora pelas calçadas do centro comercial. Durante 14 anos estivera ali. Inclusive aos sábados. Só não trabalhava aos domingos, reclamava a esposa, porque não apareceria um cliente para espantar as moscas. Se não. Se não.
Fora sempre assim. Louco pelo trabalho. As refeições diárias eram apenas interrupções necessárias. Dormir: um desperdício. A vida não era ruim. Possuíam uma casa maravilhosa. Passeavam aos domingos. Não entendia o porquê de tantas queixas. Divertia-se ao ouvir as lamentações daquelas mulheres. Afinal, apenas mendigavam um pouco mais de atenção. Não relacionavam a vida tranqüila à sua ausência. Lastimavam como se acreditassem na possibilidade de estarem sempre juntos.

A adolescente magrinha

Aceitara, felicíssima, a carona. As amigas morreriam de inveja. Quem diria, logo ela, sentadinha ao lado do famoso professor Denílson. O magnífico contador de histórias. Nunca esqueceria, graças a ele, a aleijada Janet, de Robert Louis Stevenson. Muito menos o gato preto, de Edgar Allan Poe. Agora estava ali, nervosíssima! A imagem, estampada na mochila, da RBD Roberta, cantava uma música romântica. Parnaíba nunca estivera tão bonita. Havia em tudo a estranha sensação de nunca mais.

O comerciante de 43 anos

Não abria o armazém há três semanas. Sequer saía de casa. Nunca estivera depressivo. Também jamais sentira o quão importante era a família. A esposa – fortaleza! – assumira todas as responsabilidades. Mal sabia ela que em apenas um mês o inferno revelar-se-ia ainda mais poderoso.
O comerciante acordou disposto naquele dia. Sentou-se à mesa para tomar café. Devorou o cuscuz de arroz quentinho. Percebeu a dor – quantas olheiras! – no rosto pálido da esposa. As idéias, ainda embaraçadas pelo sofrimento, tentavam reagrupar-se feito soldados após o tiroteio. Mas estava ali, pronta para a próxima batalha. E ele? Suportaria mais uma baixa? Não. Indubitavelmente.

Acaso

Matar pai e filha não fazia parte do plano. Caos. Imprevisibilidade. Denílson na cadeia. Quando estava prestes a cometer o próximo assassinato, o quebra-cabeça fora montado pela polícia. Restava apenas compreender a motivação dos crimes. Estaria o professor apaixonado pela esposa do comerciante? Matou porque o comerciante descobrira a identidade do assassino da filha? A mulher seria a próxima vítima?
Não. Não. Não. Apenas um acidente fixando lógica na incerteza do abismo.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Infantilidade



Há alguns anos passear pelas ruas de Parnaíba – pilotando uma barra circular vermelha (sem garupa!) – era uma tarefa cotidiária prazerosa. Afinal, transportar as namoradas no confortável (ironia!) varão da bicicleta rendia lá suas recompensas: cheirinhos e beijinhos no cangote da moça... roçar de joelhos no bumbum macio, nas coxas macias... (sensação maravilhosa de não dever nada a ninguém).

Senti-me invadido por essas lembranças graças a um encontro com certo aluno do ensino médio. Ao entrar em um ônibus, na Miguel Rosa (atualmente moro em Teresina), fui recepcionado com o seguinte comentário: professor ganha pouco mesmo... cadê o carro, Ajosé? O carro estava na oficina. Revisão de final de ano. Foi o que respondi. Rapidamente. Precisamente. Indignado. Não com o questionamento do aluno. Com o medo que me invadiu a alma de ser confundido, naquele instante, com alguém que precisa “pegar” ônibus todos os dias. Devo, inclusive, ter acrescentado: espero receber logo o MEU CARRO. Tom de saudade na voz: não vejo a hora de estar, novamente, com o MEU CARRO. Um pouco de esperança: amanhã, se Deus quiser, a oficina entrega o MEU CARRO.

O que eu não sabia, até então, incomoda-me demasiadamente. Em que(m) me transformei? Em que pedacinho do universo ficou perdida a humildade, sustentáculo do que havia de melhor em mim? Desde quando me tornei arrogante? Não será arrogância, prepotência, atrevimento – demência! -, sentir vergonha de estar aqui ou acolá? Estarei ensinando para os meus filhos tamanha imbecilidade? Serei professor de lições perigosas como as que assimilei, mesmo que subliminarmente?

Ainda não sei. Sei bem muitas outras coisas. Tipo: não desperdiçarei tempo precioso da minha vida reprimindo o que há de verdadeiro em mim. E o que há de verdadeiro em mim é aquela criança que perambulava pelas ruas do bairro Nova Parnaíba. Gritando. Cantando. Amando cada tiquinho de sonho materializado em experiências inesquecíveis. É aquela criança da Vieira da Cunha, sempre indignada com qualquer possibilidade de preconceito e discriminação.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

JEOSÁ


A impossibilidade de TER
O que se não pode SER
A trivialidade de SER
O que se não pode TER.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Ataúde


O espelho reflete o reflexo do reflexo do poeta
O poeta não enxerga a si mesmo
O que se imagina ser o poeta é apenas sombra

Distorcendo as paredes alvas que amparam o altar
Umidade escorrendo - entrededos – pelos corredores vazios
Sinos de angústia anunciando a derradeira procissão.