Infância

Infância

domingo, 8 de novembro de 2009

Mãe Dete



Tia Odete faleceu. Não pude velar o seu corpo. Nem mesmo acompanhá-la ao cemitério. Também não assisti ao desaparecimento do caixão no momento em que a areia preenchia a sepultura. Muito menos ouvi os lamentos das tias (Como é possível conviver a vida inteira com uma pessoa e, repentinamente, perdê-la?). A pergunta, aos prantos, é inevitável: Por que, meu Deus?

Também não estarei presente quando da leitura desta crônica. Quantas vezes não deixamos de prestigiar aqueles que amamos por estarmos ocupados demais? Quantas vezes nos afastamos quando alguém precisava apenas de um pouquinho de atenção? Quantas vezes fomos egoístas e mesquinhos quando o mais sensato era olhar para o próximo e distribuir, feito pétalas de rosas, todo o carinho de que necessitava?

Tia Odete era uma mulher forte. Não se aquietava jamais. Constantemente aqui e acolá. Era também de uma sinceridade peculiar. Olhava-nos nos olhos e disparava (Tiro certeiro!) o que sentia e pensava. Não deu à luz filhos. Mas deixou órfãos irmãos, sobrinhos e amigos. O que esperar, se não caridade, de uma mulher que, juntamente com as irmãs, abriu mão da própria vida (conquistas e sonhos) para cuidar dos pais? Imagino o vovô Zé Felipe e a Vovó Zulmira abraçadinhos com a filha querida. Retribuindo o carinho e a atenção. Explicando que ali é o Céu. Preparando mãe Dete para uma nova “vida” repleta de felicidade.

Há algumas semanas estive com ela. Conversamos bastante. Até sorri, ela também sorria, de algumas histórias, resultado da confusão mental em que se encontrava. Em sua doença, estava tranquila. Serena. Não havia revolta em suas palavras. Nem desespero nas atitudes. O olhar transmitia uma meiguice que impressionava. Em seus últimos momentos, recebeu de Deus o sossego enquanto presente. Resignada, aceitou a morte. Encarou a morte. Recebeu a morte, oferecendo-lhe a melhor cadeira. E deixou-se levar. Com a dignidade de quem soube viver. Com a dignidade de quem também sabe morrer.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

O Baile


O Baile

É possível confeccionar máscaras
Máscaras pejadas de outras máscaras
Disfarces indiscutivelmente autênticos
De uma realidade estável fingida.

Quando a face enodoada pela verdade
Desarranja-se aniquilada em lágrimas
Há sempre novo semblante instável subposto
Impossibilitando o vazio e a escuridão.

O baile prossegue enquanto as sombras
Fazendo-se de gente valsam vistosas
A música espalha-se e propaga mentira
A dança não passa de enganação.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Salve Geral



Em 2006, entre os dias 12 e 16 de maio, 139 pessoas foram assassinadas em São Paulo. Bandidos. Policiais Militares. Bombeiros. Guardas civis metropolitanos.

Salve. Geral. Selva. Geral. Selvageria. 373 ataques. Delegacias de polícia. Agências bancárias. Metralhadas. Ônibus. Carros. Incendiados. Escolas. Universidades. Repartições públicas. Fechadas. 25.000 detentos rebelados. As investidas foram uma represália à transferência de 765 presos para a penitenciária 2 de Presidente Bernardes.

O filme de Sergio Rezende, candidato brasileiro a disputar o Oscar de Filme Estrangeiro em 2010, retrata tudo isso e muito mais. A exemplo de Zuzu Angel (2006), a protagonista de Salve Geral também é uma mãe capaz de atitudes extremas pelo filho.

Mas, por incrível que pareça, a crônica de hoje não é sobre o cinema nacional. Nem sobre o amor materno. Muito menos considerarei as arbitrariedades da ditadura militar. Pouco me interessa quem são os responsáveis pelo salve geral que aterrorizou a população de São Paulo. Provocarei apenas uma intertextualidade. Na tentativa de estimular a seguinte discussão: Por que no Brasil é tão difícil estabelecer limites entre quem é o herói e quem é o bandido? Entre quem é o culpado e quem é a vítima?

Analisemos matéria publicada em importante portal de notícias de Teresina. A mais recente em relação ao assassinato, na cidade de Corrente, da professora Adriana dos Santos. Segundo os advogados de defesa, está havendo uma “verdadeira caça às bruxas em Corrente. Meu Deus, e olha que não costumo pronunciar o nome Dele em vão, Arnaldo Messias matou, de forma passional, a ex-namorada, no interior da Faculdade do Cerrado Piauiense. Meu Deus, que Ele me perdoe por incomodá-lo mais uma vez, o que fez a polícia se não investigar e conseguir que o criminoso finalmente se apresentasse? Meu Deus, prometo que é a última vez que Lhe reclamo o nome, quantas vezes precisaremos assistir aos belos discursos de advogados, interpretando a lei conforme as necessidades de seus clientes?

Francisco Carlos Constanze, em artigo intitulado Crime Passional, destaca: “O que vige no Código Penal é que a emoção ou a paixão não exclui a culpabilidade de quem fere ou mata uma outra pessoa. Portanto, para o direito penal positivado na norma escrita, não há tratamento específico e mais brando para o crime passional”.

Entendo que houve um assassinato. O triângulo amoroso esclarece o motivo do crime. Mas não desculpa. Assim como a desarticulação de criminosos, ao serem transferidos, também esclarece a instalação de um cenário violento. Mas não justifica.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Progênie


Permanecer triste. Quando se tem tudo o que sempre sonhou. Encarar a vida. Incerteza. Estremecer diante da eventualidade do amanhã. Questionar-se a respeito do ser. Do não ser. Permanecer atento a tudo aquilo que provoca dor.

Jeosá refletia. Há sete horas. Imóvel. No cantinho à direita do computador. Pensou. Pela primeira vez. Na espingarda de canos duplos paralelos. O enforcamento não era mais uma possibilidade. Idiotice. Torcer. Retorcer. Contorcer. Lençóis encardidos. Tolice. Sufocar. Abafar. Asfixiar. Lençóis bordados. O rubro nome de Joane.

Comprará muitas velas. Dias depois. Mil velas espalhadas pelo quarto. O fatídico dia. Mil pequenas línguas de fogo. O professor de literatura. A espingarda de canos duplos paralelos. Aquele aperto no peito de quando criança. Aflição inexplicável. Insistente. O coração. Instrumento desafinado de percussão.

Por enquanto. À direita do computador. Entre a escrivaninha e o guarda-roupa. Jeosá ouve os conselhos arrastados das três sombras. É a terceira visita. Em três semanas. Falam ao mesmo tempo. Mas o professor distingue cada uma delas com habilidade impressionante. Cada palavra é uma idéia. Cada idéia uma suposição. Cada suposição um caminho a ser explorado. Ao final de cada caminho. A espingarda de canos duplos paralelos.

Ouviu os pés pesados da mãe. Levantou-se. Voltou a digitar. A mãe entrou sem pedir licença. Deitou algumas roupas sobre a cama. Retirou-se. Não percebeu as lágrimas. As mãos trêmulas. A respiração cansada. Não percebeu o filho. Ali na escrivaninha.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Apenas mais uma lição


Magníficas lições as lições que nos ensinam as lágrimas. Principalmente quando é uma garotinha chorando assustada porque você a decepcionou.

Aconteceu assim mesmo. Fui capaz de agredir e reprimir olhos brilhantes. Revelei-me incapaz de perceber o encanto de uma menininha, caminhante anônima e discreta, esperta o bastante para reconhecer em mim o ser humano que sequer chegarei a ser.

E como tem sido difícil encará-la agora. Mais difícil ainda enxergar a materialização dos próprios erros. Quando os olhinhos da princesa recuam, encabulados, infinitas punhaladas, em infinitos pontos do meu corpo finito, tentam em vão atingir a alma do professor. É que o professor, traído pelo poderoso 1150, lançou pela boca o espírito pútrido. Há apenas sobejo de arrependimento sustentando a matéria desalinhada de Jeosá.

Tentando racionalizar minha atitude, afirmaria que o estresse provocado pela quantidade de aulas embotou-me o raciocínio. Acrescentaria, em meu argumento, o crescente interesse, de muitos adolescentes, pela disciplina “estudar é a maior bobagem”. Concluiria com o inadequado e frágil lugar-comum: errar é humano.

Não importa o que fiz. Não pretendo mesmo explicar. Padeço, momentaneamente, de impaciência narrativa. Descrever a cena provocaria calafrios ordinários. Melhor então nem começar. O aperto no peito e as mãos trêmulas e o arrependimento, castigos impostos pelo carrasco chamado consciência, habitante da cabeça do jerico, já provocaram em Jeosá angústia suficiente.

Penso na menininha e nos olhos da menininha desde o fatídico episódio. Precisei de duas semanas para compor esta crônica. Não sabia exatamente por onde começar. Nem o que dizer. Muito menos como me desculpar. De repente percebi o quão importante seria apenas escrever. Cada palavra, por si só, revelaria o tamanho da minha preocupação. Cada palavra, insistente, maçante, entediante (que seja!), acalmaria o coraçãozinho de Niellyda.

Acalmaria o coração de Jeosá.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Transitório


Escreverei sobre a fragilidade de meu pai. Meu pai enquanto representante de todos os pais deste mundinho familiar que nos habita. Também assumirei a angústia dos filhos – impotentes – diante do tempo, adversário poderoso.

Na verdade, a crônica de hoje não é uma prestação de serviço. É mais um desabafo. Uma comunhão. Um desembrulhar de idéias que me assombram há alguns meses. Recorro às palavras para materializar – tentativa vã – o aperto no peito. A respiração difícil. As terríveis insônias. Apelo a você, leitor, capaz de apreender o medo – saudade antecipada – de perder alguém tão querido, um tiquinho de paciência e resignação. A mesma paciência e resignação que eu não seria capaz de oferecer. Nadinha de mimos por enquanto.

Papai envelheceu dez anos em dois anos. Como não moramos na mesma cidade, as visitas são esporádicas. O que me permite maior percepção da ruína instalada em seu corpo. Esporadicidade que nos tem distanciado além da distância geográfica. Ao telefone, instala-se rapidamente a função fática. Feito dois estranhos resmungamos bobagens. Calor, chuva e escândalos políticos ocupam boa parte da conversa. Há bastante silêncio entrecortando o falso diálogo. Ao desligar, desfruto a frustração, companheira dos espíritos medíocres.

Como fazê-lo perceber sentimentos tão fortes, se não há nobreza em minhas atitudes? Sou filho único. E mal consigo retribuir o carinho e a atenção recebidos. Imagino o quão sozinho deve ser o meu pai. E sofro (Sabe aquele sofrimento bom?), imaginando-me em seus braços. Sofro porque há muitos anos tenho me fechado para o homem que me embalava todas as noites. Postado ali, pertinho da porta, empurrava, delicadamente, a rede. Cantarolava baixinho as mesmas canções.

Moramos durante dez anos em um pedacinho de casa. Parnaíba. Rua Dr. Vieira da Cunha. Naquela época, meu pai era um mágico poderoso. Transformava o minúsculo corredor que dava acesso à cozinha em nosso campinho de futebol. O dinheiro era pouco (Ser mago não rendia lá essas granas!), mas papai sempre dava um jeito de retirar da cartola histórias que me encantavam.

Muitas vezes severo, permanecia atento a todos os meus movimentos. Entre um carão e outro, olhava-me com olhos afetuosos de compreensão. Mamãe confidenciou-me, em certa ocasião, as lágrimas de meu pai. Seu Edimar chorava após uma discussão comigo. Soluçava bastante. Sentia na pele, da maneira mais terrível, as possibilidades e impossibilidades do amor.

Ninguém mais, leitor, terá a capacidade de me conduzir pelas ruas de Parnaíba com tamanha presteza e dedicação. A cadeirinha sobre o guidão da bicicleta fora responsável pelo meu primeiro deslumbramento a respeito da beleza dos seres e das coisas.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O Piauí é o Mundo


Há um mês, Mahmoud Ahmadinejad, sexto presidente do Irã, em plena campanha eleitoral, voltou a afirmar que o genocídio de seis milhões de judeus pelos nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial, não passa de um mito.

Para Ahmadinejad, numa tentativa de denegrir a imagem de Israel, o holocausto é uma farsa com o objetivo de manipular a opinião e a postura de aliados ocidentais. Há quem creia e reproduza tais opiniões pelo mundo afora. É importante lembrar que o mesmo Ahmadinejad já pregou um dia que “Israel deveria ser varrido do mapa do oriente médio”.

Ora, se o ditador psicopata iraniano, contestado agressivamente pela comunidade internacional ainda arrebanha milhares de seguidores, por que não admitir que Marco Aurélio, chefe de segurança da Emgerpi, é uma vítima? Segundo o advogado Eduardo Sindô, como a espionagem não é crime tipificado, seu cliente fora preso – arbitrariamente! – pela Polícia Federal.

Também não me surpreenderia a presença de centenas de manifestantes, diante da Superintendência Regional do Departamento de Polícia Federal, exigindo a libertação de Marco Aurélio. Afinal é um pai de família. E que polícia é essa que sai por aí prendendo pais de família? Tudo bem que o rapaz contratou dois espiões incompetentes (Pense num povo que nem para curiar serve!). Convenhamos que havia uma filmadora, um revólver e uma moto sem placa. E daí? Marco Aurélio, foragido há mais de uma semana, apresentou-se espontaneamente. Há quem não considere espontaneidade em tal manifestação (Eu mesmo se tivesse a Polícia Federal no meu encalço apareceria ligeirinho-bala!).

Mas deixemos a ironia de lado. Questionemos. Por que um funcionário da Emgerpi contrataria tais pessoas? De quem partiu a ordem afinal? Por que era tão importante flagrar Jaylles Fenelon em alguma situação constrangedora? Se apenas um susto, a intenção era fazê-lo desistir das acusações?

Marco Aurélio confirma a contratação do policial e do cinegrafista. Compara-os a paparazzi. A defesa sustenta a afirmação. O clima de incerteza e insegurança movera as ações articuladas pelo servidor da Emgerpi. A intenção era a mais nobre possível (Maldita ironia que não me deixa articular melhor as idéias!). Talvez inocentar a presidente Lucile Moura. Restabelecer a ordem. A paz. A tranquilidade. Talvez.

O que bem sabemos é que Marco Aurélio já foi libertado. Sabemos também que Lucile Moura já não é presidente da Emgerpi. Agora é Superintendente de Acompanhamento de Obras do Governo. Traduzindo: fiscalizará obras realizadas pela Emgerpi.

Enquanto isso, Mahmoud Ahmadinejad, reeleito com 63% dos votos, enfrenta a pressão da Anistia Internacional. É que centenas de pessoas foram presas durante os protestos contra a suposta fraude nas eleições presidenciais.

Testes nucleares continuam sendo realizados pela Coréia do Norte... Calminha. Paremos por aqui. É bomba demais para um único artigo. Que venha o próximo então.

sábado, 18 de julho de 2009

Poderosos Chefões


Quando Mario Puzo publicou, em 1969, O Poderoso Chefão (The Godfather), talvez não imaginasse que a ascensão de um siciliano por meios ilícitos - após mudar-se para os Estados Unidos -, pudesse adquirir a universalidade daquelas obras que em pouco tempo alcançam o status de um best-seller.

O livro é mesmo universal. Atemporal. De uma atualidade sobrenatural. O padrinho Don Corleoni, agora chefe de poderosa família mafiosa, tem “amigos” influentes e corruptos: juízes, advogados, policiais, empresários, jornalistas e produtores de cinema. Todos entrelaçados em uma intricada rede de troca de favores. É assim que o italiano dirige os negócios. Ajudando todos que o procuram, para que no momento certo possa também contar com agrados preciosos.

Claro que em vínculo marcado pelo mero interesse material, há sempre de surgir - vez ou outra - a figura do precipitado. Do inconformado. Do imprudente. Do traidor. Aquele indivíduo tão obstinado em ganhar mais dinheiro, incapaz de perceber a sepultura aberta em torno dos próprios pés.

Emergem os escândalos. Os rivais, culpados de semelhantes crimes, exigem punição exemplar. A população, em sua grande maioria, opta por uma tira de pano, bastante apertada, oprimindo os olhos. Em pouco tempo a normalidade restabelecida. Bandido deixa de ser bandido. O indivíduo era apenas uma pessoa de bem, íntegra e ética. Vítima de uma série de mentiras orquestradas para destruí-lo e impedir a continuidade de maravilhoso trabalho.

O poderoso chefão não pode cair. Quantos não cairiam também? Efeito dominó. Uma bagaceira só. Que se dê mal um assistente aqui, um parente acolá. E prontinho! A sociedade empanturrada de justiça. Hora de tirar o merecido cochilo. Sonhar com ursinhos tagarelando em castelos cor-de-rosa.

Mario Puzo, escritor e jornalista, faleceu há dez anos. Seus textos não são meros retratos míticos da máfia siciliana. Também não são resumos históricos da emigração italiana. O conjunto de sua obra é, verdadeiramente, a reconstituição psicológica de um ser humano distorcido após duas grandes guerras.

Seres humanos sobrevivendo a qualquer custo. Ocupando, até os dias de hoje, os mais importantes cargos. Sociopatas valendo-se dos mesmos métodos eficientes de outrora. Uma gente insensível de cabeça erguida. Permanecendo no poder, mesmo com tantas evidências arrancando-lhes as máscaras.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Ícaro


O homem deseja. Perfeito. Maravilhoso. Logo a aspiração torna-se realidade. Não realizaremos, individualmente, todos os sonhos (verdade inquestionável). Mas, aqui e ali, de grão em grão, e prontinho: minhas conquistas somadas às conquistas alheias resultam em um emaranhado de incontáveis possibilidades. Como se um gênio da lâmpada realizasse todos os desejos da humanidade, distribuindo-os entre cada um de nós. Fernando Pessoa, em sua obra Mensagem, já anunciava: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. Até mesmo quando Ele não quer, acrescentariam os mais irônicos. Apenas para contrariar o poeta português.

Motivado pelo comentário de um colega professor, resolvi escrever este artigo. De orientação – religiosa, filosófica e psicológica – duvidosa, o mestre arremessou o seguinte comentário, a respeito do acidente aéreo, envolvendo o voo 447, da Air France: “Homem não foi feito pra voar. Se fosse pra voar nascia com asas que nem passarinho”. Passarinho. Titica de passarinho. Pensei. Elaborei. Calei.

O professor em questão ainda acredita que as asas de Ícaro foram destruídas pelo calor. Permanece confuso em descomunal ignorância entorpecida. A falha no funcionamento do Pitot (“O tubo mede a pressão frontal do ar e a compara com a pressão que entra por orifícios laterais.”), provocada pelo gelo que impede a entrada do ar, é considerada a causa mais provável da queda do Airbus. Bastaria que meu imprudente colega de profissão assistisse ao filme Homem de Ferro (Iron Man), para que a ingenuidade literária fosse substituída pela realidade científica. Ao tentar voar cada vez mais alto, tal qual o filho de Dédalo, Tony Stark, interpretado por Robert Downey Jr., é surpreendido pelo congelamento da armadura. O problema será solucionado logo nas cenas seguintes. Atitude que a Air France não tomou, mesmo consciente de problemas semelhantes registrados em algumas aeronaves.

Entusiasmado pelo Botafogo, um amigo perdeu recentemente a oportunidade de assistir a um clássico no Rio de Janeiro. Tudo porque não considera a possibilidade de voar. Assim como a de meu companheiro de profissão, sua opinião é imperturbável: “Lugar de gente é no chão. Em terra firme”. Para cada 10 milhões de voos de aeronaves de grande porte, apenas 4 acidentes. De acordo com o psicólogo e psicanalista Robert Wolfger, o medo de voar é irracional. E acrescenta: “Uma pessoa teria de voar todos os dias durante 3.400 anos para se tornar uma vítima”. O medo de voar, segundo o especialista, “é desproporcional aos verdadeiros riscos da aviação”.

O medo, estatisticamente, é, certamente, desproporcional. Mas não há coleta de dados que enfraqueça – concluo - os seguintes comentários empíricos: “Envie esses dados para as famílias das vítimas”, esbravejou o professor. “De repente é o dia do piloto”, ironizou o botafoguense.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Mães e Filhos


Na semana que antecede o dia das mães, pretendo escrever (desabafar) a respeito de uma incômoda idéia, dessas que ficam atravessadas durante semanas, atrapalhando a organização dos pensamentos, implorando para materializar-se enquanto texto. Idéia que não resultará em cartões coloridos. Em agrados e mimos. Em palavras de amor.

Mães reunindo-se em grupos de apoio. Mães apoiando mães. Mães de filhos-apenas-saudade. Mães derrotadas diante de meninos mortos. Mães de filhos-apenas-lembrança. Mulheres sozinhas e confusas. Assimilando os porquês de tamanha aflição.

O adolescente não entende que, ao arriscar-se, é a vida dos pais que também está em jogo. O adolescente não vislumbra a possibilidade do erro. E ao errar, exaure a mãe em um inferno-turbilhão de desespero. Cabe ao pai (o macho racional indestrutível), juntar os cacos daquela família arrasada pela fatalidade. Bem sabe ele que o serviço é inútil. Nada será capaz de substituir o pedacinho que se foi para sempre.

E o pedacinho que se foi para sempre passava as noites com os amigos (pedacinhos que também se foram para sempre) praticando um estranho jogo de xadrez com a morte. Egocêntrico, não enxergava o vigor da adversária. Sem capacete, alcoolizado e em alta velocidade alumiava-lhe a possibilidade da vitória. De repente: xeque-mate. O reizinho está morto.

E quantos eufemismos diante da mãe! Quanta gritaria durante o velório! Por quê? Se era tão jovem. Por quê? Se era imortal. Por quê? Se sabia exatamente o que estava fazendo. Por quê? Se nada poderia atingi-lo. Por quê? Se agora apenas sombra. Apenas pó. Apenas nada.

Numa tentativa desesperada, mães agarram-se a mães. Chegou a hora de elaborar o luto. Para isso há páginas na internet. Programas de televisão. Grupos religiosos. Há mães compartilhando a experiência dolorosa em praças e auditórios. O problema é que o diálogo é restrito. Entendem o sofrimento umas das outras, mas não entendem o papel da família nesse processo. São capazes de amparar, enquanto nova tragédia constrói-se em suas próprias casas.

Sonho com o dia em que um grupo de adolescentes interditará a Frei Serafim. Faixas e cartazes chamando a atenção de tantos outros adolescentes. Alguns ficarão espantados. Afinal, não são mães chorando a perda dos filhos. São os próprios filhos anunciando: não nos perderemos mais.

sábado, 18 de abril de 2009

Caso de Polícia


No Brasil, agora é assim: bandido que tem uma boa condição financeira contrata logo o perito Ricardo Molina. O resultado é sempre o mesmo: a polícia, despreparada e precipitada, não soube trabalhar direitinho. Os laudos de Molina: taxativos, conclusivos e inquestionáveis (Ah, gradação, o que seria da ironia sem a redundância que tão bem sabes provocar!).

Depois do casal Nardoni, agora é a vez de o banqueiro Daniel Dantas recorrer ao miraculoso trabalho do professor, na área de Fonética Forense, da Unicamp. Penso que Daniel Dantas não foi feliz em sua decisão. O nome de Ricardo Molina, hoje, está mais associado a um sensacionalismo, desrespeitoso e imprudente, em relação ao trabalho de nossa perícia criminal. Se ele é um bom profissional? Duvido muito. Ético? Ele já deixou bem claro que não é. Nem precisamos pesquisar muito. Declarações ofensivas e debochadas do professor estampam as principais páginas dos principais jornais do país: "Os peritos do caso Isabella estão igual cachorro correndo atrás do próprio rabo". Influenciar a opinião pública, excitar a mídia e agendar cada vez mais palestras é, certamente, a principal habilidade de Ricardo Molina.

O juiz Fausto de Sanctis condenou Daniel Dantas a dez anos de prisão por corrupção ativa. O banqueiro, utilizando-se do ineficiente trabalho dos escudeiros Humberto Braz e Hugo Chicaroni, tentou subornar o delegado da Polícia Federal, Victor Hugo Ferreira. Agora, a mais nova arma do banqueiro, afirma, em laudo: "A atribuição das falas ao interlocutor Humberto Braz é um ato arbitrário, sem qualquer fundamento técnico".

Sem qualquer fundamento técnico? Paciência! A polícia brinca de investigar? É isso? É assim que funciona? Apenas o senhor Ricardo Molina assistiu a todas as aulas? E nas aulas o que lhe ensinaram? As conclusões beneficiarão aquele que contratou e remunerou - muito bem, diga-se de passagem - o serviço do perito?
Na condição de professor de literatura, invoco Edgar Allan Poe, Charles Dickens e Ruth Rendell. Invoco Agatha Cristhie, Hitchcock e Arthur Conan Doyle. Invoco a inteligência e a sensatez. Porque jamais a ficção pareceu tão verossímil. Porque, no Brasil, a inverossímil realidade já não satisfaz.

segunda-feira, 30 de março de 2009

Carpe Diem (?)


Sou professor de literatura há 12 anos. Convivo diariamente com centenas de adolescentes. Posso afirmar, sem nenhuma licença poética, que nos entendemos bem. Principalmente porque, na condição de adulto - por motivos quaisquer -, não esqueci que um dia já fui adolescente também.

Geralmente é assim: adultos não suportam a adolescência que, por sua vez, não suporta a infância. Conclusão: carrega-se a falsa impressão de concepção instantânea. Explicação: como se, ao abrir os olhos – Maravilhoso parto novo! -, o homem de vinte e cinco anos surgisse, aos vinte e cinco anos, sem tirar nem pôr.
Considerar o que somos, repudiando o que já fomos, resulta em estúpida postura arrogante e imediatista. Vislumbramos de tal forma o momento presente que não nos preparamos para o futuro e muito menos respeitamos as maravilhosas experiências adquiridas.

A adolescência aniquila qualquer possibilidade de sermos o que um dia os pais sonharam para nós – mesmo bem antes da concepção. O adulto é o reflexo desvirtuado da imagem perfeita – Egocêntrica! - do adolescente de outrora. É que em algum momento, por um descuido fatal, o espelho trincou.

Que mente sã ainda relacionará o ser adulto à estabilidade social? Quando verdadeiramente estáveis? Em qualquer etapa da vida esforçamo-nos para sobreviver. E sobreviver significa adequar-se. A ingenuidade, a rebeldia e a maturidade são apenas instrumentos de adaptação. Apenas nos comportamos, inconscientemente, como a sociedade espera que nos comportemos. Por isso mesmo adaptação não é – E jamais será! - sinônimo de estabilização.

Como eu poderia então, adulto e professor do ensino médio, rotular meninos e meninas, se habitam em mim todos aqueles que um dia já fui?
Como eu poderia então, adolescente e jogador de basquete, rotular meninos e meninas, se o que sou, ao escrever este artigo, será também um pouquinho de mim no instante seguinte?

Como eu poderia então, criança e super-herói, rotular meninos e meninas, se todos os dias as lembranças de erros e acertos surgem diante de mim, aos berros, fura-bolo em riste: você é humano!

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O Teatro no Brasil


Não participo de uma produção teatral há alguns anos. Ando meio manco e desiludido. Pela primeira vez a ignorância de meu pai – “trabalhar de graça é perda de tempo, pagar para trabalhar é burrice” – parece fazer sentido. Não pelo trabalho em si. Mas pelo trabalho que dá, e acredito que não seja apenas no Piauí, convencer empresários e fundações (anti) culturais a investir em projetos artísticos. O resultado: montagens medíocres. A fatalidade: um público desconfiado. A realidade (?): maravilhosos são os espetáculos com atores globais. A indignação: ais, suspiros, ais.

É que o teatro no Brasil já surgiu deformado. Uma desfiguração só. Doutrinário. Coube à Companhia de Jesus transformar peças teatrais em instrumentos de educação e catequese. Não confundir com as encenações gregas que visavam, através da dramatização, preparar, por exemplo, as crianças, para um amadurecimento saudável. Aqui, individualidades e anseios não eram respeitados. E ainda tem crítico que brada por aí que os autos de José de Anchieta são de orientação Vicentina. Seriam, se Gil Vicente, prematuramente, não ousasse questionar – o que importa se moralisticamente? – os mais diversos comportamentos sociais. Seriam, se Anchieta, corajosamente, produzisse textos engajados e compretidos com o seu tempo, como faria mais tarde, em seus sermões, o padre Antônio Vieira. Seriam, se o Brasil – a Ilha dos Papagaios – não fosse tão jovem e não se arrastasse às margens do Renascimento Cultural Europeu.

A supremacia do gênero lírico – durante os primeiros quatro séculos de vida do Brasil (leia-se Brasil oficial) – também atravancou de certa forma o desenvolvimento do gênero dramático no país. Se considerarmos que o gênero épico, a partir do século XIX, principalmente com o desenvolvimento do romance, cativava cada vez mais o público burguês, sobretudo o universo feminino, enxergaremos um teatro nacional tímido, que tenta despertar a atenção da burguesia fazendo-a sorrir da sua própria hipocrisia. Coube a João Caetano – e não a Martins Pena – numa época em que se encenava em barracões e tablados improvisados, profissionalizar o teatro brasileiro, através do incentivo ao mecenato e à subvenção estatal.

Já no século XX – sei que muitos ficam confusos assim como eu -, o descaso daqueles organizadores da Semana de Arte Moderna em relação ao teatro. Como é possível que um evento encenado (ironia cruel!) no Teatro Municipal de São Paulo, não tenha percebido a força da arte dramática enquanto grito de uma nova escola literária? Logo eles, os modernistas, que buscavam na realidade do cotidiano motivos de inspiração. Por que não foram capazes de, antropofagicamente, regastar os trabalhos de Tchekhov e de Antoine? De Stanislavski e de Meyerhold? Talvez porque não houvesse um dramaturgo entre eles. Antecipando-me a possíveis comentários a respeito da produção dramática de Oswald de Andrade, limito-me a explicar que as peças sequer foram montadas, senão décadas depois da fase combativa do movimento.

A partir dos anos 40 do século XX, a explosão. Bertolt Brecht, Tenessee Williams, Arthur Miller, Samuel Beckett, Jean Genet e Grotowski desdobram-se em Nelson Rodrigues, Jorge Andrade, Plínio Marcos e Ariano Suassuna. Em pleno século XXI, Ariano Suassuna, Plínio Marcos, Jorge Andrade e Nelson Rodrigues desdobram-se em tantos outros. Do Clássico ao Absurdo. Do Absurdo ao Clássico, o teatro brasileiro procura ainda (silêncio mórbido) construir uma identidade a partir de tantas outras identidades.