Infância

Infância

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Percussão


Tambores.

Pés pesados contra o chão de terra batida. Contorce-contorce de corpos espalhando-se (espelhando-se) pelo salão. Uma gritaria-gemido maltratando as cordas vocais de fêmeas descontroladas. Olhos salientes-silentes enxergando o que não há.

Tambores.

Mãos naquele movimento vertical-horizontal-vertical de não parar jamais. Torsos despidos-suados pulsando agitados balouçando colares. Cabeças-pescoços-membros descompassados e febris. Enquanto fumaça e vermelhidão embotam o tino-senso-juízo da gente-turbilhão.

Tambores.

Menina esquálida-deitada-amarrada. Apenas um fio de pano esconde (não esconde) a vulva e os pêlos dourados. Mamilos rijos-firmes-enormes encaram a cara de seus agressores. Pernas arqueadas-surradas-esfoladas. Braços sem ânimo. Sem vida. Sem nada. Correntes de carne na carne cansada.

Tambores.

Batuque-batuque. Aroma-aroma. Sabor-sabor. Ofusca-ofusca. Calor-calor. Rasgando o corpo da menina esquálida-deitada-amarrada, eis que emerge - a partir do diafragma - uma velhinha simpática-tranquila-apática. Sequer percebe que aquele estranho parto separou de vez o tórax e o abdome da adolescente.

Tambores.

Os sentidos captam a morte da menina esquálida-deitada-amarrada. Há um batuque-batuque. Aroma-aroma. Sabor-sabor. Ofusca-ofusca. Calor-calor de ruína no ar. Agora a cuiambuca cheinha do sangue da virgem-menina alimenta a gente-indolente – gotas de vermelho nos lábios. Nas mãos. Nas roupas. No chão.

domingo, 17 de outubro de 2010

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Ignorantim



Não sei bem o que sou. Nem o que pretendo ser. Crescer. Padecer. Mais parecer esboço do esboço. Tamanho esforço e ainda não ter. Aparência. Essência. Aquela dormência na alma. Calma, Jeosá. Adormeço. Esqueço. Ofereço (me) a (o) sacrifício. Malefício. Vício necessário. Prazer ao contrário. Espelho inverso refletindo o reflexo do que jamais alcançarei. Ser. Crescer. Padecer.

De volta à escrivaninha. Os objetos de sempre, sempre observando. Curiosos. Espreitam o novo texto. O silêncio de Jeosá. Mãos macias confeccionando uma nova (?) combinação de palavras. O desabafo de todas as noites. Ora fragmento. Ora ideia. Ora ideia incapaz de materializar-se enquanto expressão. Dimensão. Tempo. Espaço. O fracasso do fracasso não seria libertação?

Pois não. Divagação. Quando o caminho estreito estreita e mesmo assim seguimos em frente. Não há passagem. Mesmo assim o poeta caminha pelo terreno rumo ao abismo de não se ter mais para onde ir. Refletir. Concluir. Permitir-se. Perder-se. Ofender-se. Ninguém compreende por que um homem sentado diante de um computador encara o teclado e digita e encara o teclado e digita letra após letra. Compreenderiam se as letras, metáforas de lágrimas borrassem as minhas mãos?

Sigo escrevendo. Antevendo frustração. Resignado diante da impossibilidade de exprimir o que brada dentro de mim. Ignorantim. Arlequim cínico. Personagem inadequado para a representação de uma tragédia. Nem Édipo. Nem Hamlet. Apenas Jeosá. O clown. O grotesco. Existindo. Exibindo. Ordinária representação.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Sonetos de Camões

Já está no ar: CPI DA LITERATURA, com o
professor Ajosé. No primeiro programa, pequeno documentário sobre
Camões, autor indicado pela UESPI.

Assista:

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Sem rumo (ao) certo



Dissertar a respeito de. Argumentar. Contra-argumentar. O quê? Por quê? Afinal o vazio não repousará enquanto silêncio? Há sempre o dito. O não dito. O bendito. Maldito escritor. Deslizando a pena-teclado sobre o papel-monitor. Trabalho limpinho. Apurado. Asseado. Tratando de. Quê?

Assunta-se o de sempre todos os dias. Ladainha. Lengalenga. Suposição. Contradição. Aforismos que se perdem na escuridão imensa. Imensidão. Ali um conceito. Aqui um desabafo. Bem acolá uma sugestão. Indigestão. Precisão de. Sossego.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Atrevimento


Desdém. Soberba. Presunção. Arrogância. Pedestres desafiando automóveis. Imprudência. Tolice. Idiotia. Precipitação. Delirar feito Ícaro e despencar de um ego-altura-notável. Vaidade. Bazófia. Filáucia. Orgulho. Perceber-se um império esquecendo que os impérios certo-tarde-cedo, arruinados, desaparecerão.

Sou professor de literatura há 15 anos. Adoro o meu trabalho. Cultivo uma paciência poucas vezes abalada pelo comportamento arredio de discípulos “psicopatinhas”. Relacionando autores, obras e características das mais diversas escolas literárias ao cotidiano dos alunos, consigo estar juntinho-pertinho-coladinho da maioria. As experiências dos “meus” adolescentes tornam-se, constantemente, maravilhosos espetáculos (desabafos) durante as aulas.

Apenas não tolero a ignorância. O não querer pagar-responder-assumir-encarar provoca em meu espírito, tão afeito à harmonia, uma explosão-destruição jamais vista em qualquer guerra de até então. Pois não. E assim, mais parecendo um desses soldados matar-ou-morrer, armado do mais sofisticado instrumento de provocação, disparo argumentos que sequer atingem qualquer coisa que seja inimigo ou civil inocente.

Camarinhas de sangue anunciam meu corpo enquanto único corpo ferido durante o combate. Maldita consciência que me conduz à reflexão. Compreender o quê? Conversar com a coleguinha, atrapalhando o andamento da aula, tudo bem. Mas sentir-se ofendida-constrangida ao ser interrompida pelo professor é um filme de terror daqueles filmes de terror em que todos os mocinhos são assassinados – e com requintes de crueldade.

Assim fui afrontado por uma aluna da segunda série do ensino médio:

- Eu faço o que quiser. Onde quiser. Quando quiser.

O leitor é capaz de enxergar-imaginar a minha cara de bobo? E a postura deus-meu-o-que-digo-agora? Como enfrentar alguém tão poderoso? Adversários onipotentes não constam do catálogo de adversidades elaboradas, estrategicamente, para estressar o professor. Muito menos há em sala de aula um mural com respostas selecionadas especialmente para ocasiões dessa natureza.

Na condição de quem não faz o que quer, onde quer e quando quer, conduzi a moçoila à coordenação. Regras são regras. Deixei-a sentadinha – olhos esbugalhados amaldiçoavam o professor e todos os filhos do professor. Retornei para a sala. Contrariado. Desanimado. Encerrar a aula, dez minutos antes de tocar o sinal, foi o máximo de liberdade-revolta que ainda consegui manifestar-desfrutar.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Jeosá e a solidão



Não há velas no quarto. Ainda. Nenhuma espingarda de canos duplos paralelos repousa na escuridão. Até então. As sombras não assopram conselhos no ouvido esquerdo do professor. Lençóis arrumadinhos. Limpinhos. Engomadinhos. Entre o guarda-roupa e a escrivaninha rebenta o vazio. A solidão.

Oito olhos de jabuticaba, aos pares, ostentam uma roxura bem mais sombria que o mais sombrio dos pensamentos de Jeosá. Oito olhos de jabuticaba, aos pares, quietinhos nos cantinhos superiores da alcova. Duas ágatas ocres assustadas piscam-piscam ininterruptas. Duas ágatas ocres despejando lágrimas e aflição.

Jeosá sossega enquanto os amigos, tão cheios de carne e júbilo, morrem. Jeosá espreita a morte enquanto a morte impaciente destrói aqueles que sequer chegaram a contemplá-la – a ruína. E Jeosá absorve, feito esponja, todos os estranhos sentimentos que habitam cabecinhas talentosas. E Jeosá vislumbra a própria sorte – espingarda de canos duplos paralelos -, satisfeito porque não será arremessado de um carro ou mesmo esmagado por um caminhão.

Lá fora a mãe arrasta-se de um lado para o outro. O mundinho daquela mulher resume-se às extremidades da casa. Da cozinha para o terraço. Do terraço para a cozinha. Da cozinha para o terraço. Vez ou outra um intervalo diante do quarto do filho. Nenhuma palavra. Apenas a respiração apressada, o desejo reprimido de amar, a maternidade gritando carinho e atenção.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Educação e Bom Senso


Em plena terça-feira de carnaval uma discussão entusiasmada. Cinco adolescentes decidiam(?) – aos berros - o destino das emparedadas Anamara, Elenita e Eliane.

Apenas uma jovenzinha macérrima e de nariz levantado defendia a brasiliense, Doutora em Linguística inconformada com seu IMC(Índice de Massa Corporal), Elenita Gonçalves Rodrigues. Ela tem personalidade, argumentava a voz sibilante – irritante. E concluía sempre com o seguinte clichê: A Lena é autêntica porque diz o que pensa.

Não contive o questionamento. Reproduzo-o. Desde quando lançar pela boca arrogância e agressividade tornou-se propaganda em rede nacional de caráter exemplar? Apontar defeitos, menosprezar e ridicularizar não faz parte do repertório das pessoas de bom coração. Não podemos continuar confundindo o famoso “digo o que penso a qualquer hora” com a mais estapafúrdia falta de educação.

Após a eliminação, Elenita preocupou-se em afirmar que o estigma de ex-bbb atrapalharia sua carreira docente. Qual nada! Em um país tão carente de doutores, nenhuma faculdade ou universidade fechará as portas para um intelligent brother, big brother que seja. Há uma ferida mais profunda rasgando-lhe a carne. Marcas espalhadas pelo corpo difíceis de ocultar. Tatuagens estampando em letras vermelhas garrafais intolerância e incompreensão.

Tomara que a jovenzinha macérrima de voz sibilante tenha aprendido importante lição: o egocentrismo e a arrogância talvez sejam fantasias carnavalescas de uma gente frustrada e infeliz.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Autodidata


Saramago chegou ao Dom Barreto por volta das quatro horas da tarde. Bastante preocupado. Sabia bem o motivo da reunião. Certamente perdera o emprego. Sentia-o escorrendo feito lama entre os dedos dos pés. Demitido antes mesmo de começar a trabalhar. Mais uma experiência desastrosa para o currículo. Mais uma experiência desastrosa por causa do currículo.

Não fora bem recebido na escola. Desde a primeira visita, Saramago captara uma estranha energia restritiva – perfídia emanando dos colegas professores. Mestres e doutores não convivem bem com os autodidatas. Não suportam – citando Mário Quintana – os ignorantes por conta própria.

Ali no sofá. Sentadinho. Pernas cruzadas. Mãos repousando sobre o joelho direito. Aguardava – ansioso! - o veredicto. O que diria para a diretora? Pediria desculpas por não ter concluído o ensino superior? Argumentaria, relacionando prêmios e publicações? Confessaria que sempre precisou trabalhar bastante para resistir – existir? Ou melhor seria permanecer quietinho e resignar-se?

Professor, o senhor ainda não é formado. Não sou. Então não é possível contratá-lo. Entendo. Política da escola. Sei. Não podemos abrir um precedente. Imagino. Mas gostaria de contar com o seu trabalho. Tudo bem. Análise de obras literárias. Final do ano? Final do ano. Fico aguardando então. Podemos ficar com o currículo? O currículo! Podemos? Certamente.

Saramago entrou no carro. Encarou o retrovisor. Não reconheceu aqueles olhos que o olhavam inquisidores - frustrados. O autodidata é uma sombra malcheirosa – refletiu. É um verme alimentando-se da putrefação. Criatura anônima esgueirando-se para que ninguém o perceba. Carente de um imponente diploma, o professor nem pode brincar de erudição.