Infância

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sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Autodidata


Saramago chegou ao Dom Barreto por volta das quatro horas da tarde. Bastante preocupado. Sabia bem o motivo da reunião. Certamente perdera o emprego. Sentia-o escorrendo feito lama entre os dedos dos pés. Demitido antes mesmo de começar a trabalhar. Mais uma experiência desastrosa para o currículo. Mais uma experiência desastrosa por causa do currículo.

Não fora bem recebido na escola. Desde a primeira visita, Saramago captara uma estranha energia restritiva – perfídia emanando dos colegas professores. Mestres e doutores não convivem bem com os autodidatas. Não suportam – citando Mário Quintana – os ignorantes por conta própria.

Ali no sofá. Sentadinho. Pernas cruzadas. Mãos repousando sobre o joelho direito. Aguardava – ansioso! - o veredicto. O que diria para a diretora? Pediria desculpas por não ter concluído o ensino superior? Argumentaria, relacionando prêmios e publicações? Confessaria que sempre precisou trabalhar bastante para resistir – existir? Ou melhor seria permanecer quietinho e resignar-se?

Professor, o senhor ainda não é formado. Não sou. Então não é possível contratá-lo. Entendo. Política da escola. Sei. Não podemos abrir um precedente. Imagino. Mas gostaria de contar com o seu trabalho. Tudo bem. Análise de obras literárias. Final do ano? Final do ano. Fico aguardando então. Podemos ficar com o currículo? O currículo! Podemos? Certamente.

Saramago entrou no carro. Encarou o retrovisor. Não reconheceu aqueles olhos que o olhavam inquisidores - frustrados. O autodidata é uma sombra malcheirosa – refletiu. É um verme alimentando-se da putrefação. Criatura anônima esgueirando-se para que ninguém o perceba. Carente de um imponente diploma, o professor nem pode brincar de erudição.