Infância

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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Vigília



Há apenas o presente. O presente enquanto único conceito tangível. O atual. O corrente. O existente. O vigente. O indispensável. 

Não podemos brincar de fazer de conta que o presente não existe. Já o passado é passado. O futuro, apenas o presente que ainda não se estabeleceu enquanto tal. Passado e futuro. Instantes de fumo. O que se não alcança jamais.

Nada de mais. Bem fácil de conceber. Passado e futuro não passam (não passarão) de abstrações. Lembranças ou anseios. Saudade ou aspiração. O passado, imagem embaçada. O futuro, gravura por colorir. Passado e futuro. Desdobramentos vulgares de um momento singular, o presente.

           

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O Assassinador (ÚLTIMA PARTE)


Após retalhar e mergulhar no rio os pedacinhos de Maria Celeste, Crispim, como de costume, afastou-se rapidamente. Era quando a voz de Conceição sussurava-lhe ao ouvido: cuidado, meu irmão. Tinha tempo apenas para lavar as mãos. Cabia à irmã dar um sumiço nas roupas sujas.

Precisava apressar-se. Pedalaria durante uma hora. Cansado, repousaria mais uma vez no corpo de Conceição. Ela aprendera, depois de tantos anos, que o sucesso do irmão resultava em uma maravilhosa sucessão de orgasmos. E que depois, sem nenhum remorso, dormiriam abraçadinhos até o dia clarear.

sábado, 26 de janeiro de 2013

O Assassinador (DÉCIMA PARTE)


Crispim deitou-se ao lado da irmã. Inspirou, enojado, o cheiro abafado da luxúria que exalava do colchão e do lençol. Todos os seus sentidos rejeitavam a presença de Miguel que insistia em não desaparecer.

Conceição ajeitou o corpo junto à parede. Ficou encarando algumas teias de aranha que brilhavam entre as vigas do telhado. Há um mês os irmãos dormiam naquela cama. Não conversavam durante o dia. Miguel partiu levando consigo a felicidade da esposa.

A respiração ofegante resultava em um frenético movimento dos peitos de Conceição. E durante as noites, Crispim passava horas acompanhando o subir e descer daqueles montes de carne. Até adormecer. E sonhar.

E nos sonhos Conceição era a própria mãe de Crispim. E Crispim era o homem, substituto do pai, que fora capaz de devolver a ela o prazer de viver.

(CONTINUA...)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O Assassinador (NONA PARTE)


As mulheres eram sempre amarradas com as mãos para trás. A mordaça também era um acessório por demais necessário. Crispim não suportava os gritos de uma fêmea. Mesmo sabendo que o golpe seria único e certeiro, sabia também que aqueles segundos que antecediam a bordoada provocavam, na vítima, tamanho desespero que, se pudesse gritar, o próprio desespero, arremessado à velocidade do som, provavelmente mataria o agressor.

As roupas eram arrancadas bem mais tarde. Crispim gostava de observá-las morrendo. Lamentava o fato de não poder enxergar o sangue confundindo-se com a lama. Impossível realizar aquela faina durante o dia. Era contentar-se com o estrebuchar dos corpos. Com o ronco que antecedia o último suspiro.

Depois era despir e lavar o cadáver. Prepará-lo para o último sacrifício. No caso de Maria Celeste tudo era bem mais especial. Crispim estava diante de uma mulher que se não deixou profanar por tempo demais. Ela não era como Maria das Dores. Ela não era como Conceição de Maria.  Nem era uma jovem sedenta de sexo e promiscuidade. Mas era virgem e se chamava Maria.

(CONTINUA...)

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O Assassinador (OITAVA PARTE)


Desolação. Miguel sumido há dois dias. Pegou a Barroso para Teresina prometendo voltar ao anoitecer. Não era de farras. Muito menos de mentir. Conceição ligou para o doutor Astrogildo que confirmou o motivo da viagem. Miguel estivera em sua residência cuidando do jardim. Saíra, segundo o patrão, por volta das cinco horas da tarde.

Mais uma noite sem o marido. Insônia. Lágrimas. Crispim bateu três vezes na porta do quarto. Quero dormir contigo. Entra, meu irmão. Tô preocupado. Ele volta, Crispim. Tô preocupado. Ele gosta de nós, Crispim. Gosta nada. O Miguel deve de ser que nem o papai.

(CONTINUA...)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O Assassinador (SÉTIMA PARTE)


Maria Celeste caminhava com dificuldade. Em maio, as águas do Poty já não incomodavam as margens. O obstáculo era um rastro escorregadio de lama e de sujeira. E a escuridão. E a certeza de que ninguém apareceria para salvar a empresária. Impossível para o motorista que cruza a ponte Wall Ferraz naquele instante farejar que a alguns metros dali há uma mulhere prestes a ser assassinada. Estuprada. Esquartejada.

Mesmo sendo bem mais velha, Celeste preenchia os requisitos necessários para o sacrifício. Era uma MARIA VIRGEM. Bicho raro naquela idade.  Tanto que as últimas vítimas contavam quinze anos quando foram atacadas. A mais velha, até então, tinha vinte e trê anos. Era uma freirinha recém-chegada em Teresina. Estavam certas as prostitutas mais antigas da Paissandu quando alardeavam: Homem vai pagar pra quê? Tem mais mulher dando de graça do que político no inferno!

Triste sina a de Maria Celeste. Fugiu dos homens como o diabo foge da cruz por temer uma paixão que a afastasse da mãe e agora, justamente por isso, estava prestes a deixar dona Joana sozinha. Pensará mamãe que depois de tantos anos resolvi abandoná-la? A janta na mesa. Esfriando. E a filha que não chega. Estranharia o portão aberto? Desolação.

(CONTINUA...)

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O Assassinador (SEXTA PARTE)


Os três primeiros meses acomodaram-se na boa santa paz de meu deus. Conceição engordava saudavelmente. Era, ao mesmo tempo, esposa, mãe e irmã. Uma mulher realizada. Feliz. Cuidava muito bem daqueles dois homens que se entregavam cegos às suas comidas e aos seus carinhos. 

Miguel, orgulhoso de Crispim, vivia comentando a disposição do menino. Não era preguiçoso como ele mesmo fora naquela idade. Gostava mesmo de trabalhar. Manejava a enxada e a foice como ninguém. Não vacilava, quando armado de uma borduna, caceteava a testa de um bode. Ou mesmo quando sangrava o pescoço de uma galinha.

Crispim, por sua vez, não suportava ver a irmã ao lado de Miguel. No colo de Miguel. Na cama de Miguel. Cada toque. Cada beijo. Cada gemido rasgando a noite era uma facada em seu coração. Quem era afinal aquele homem que recebia de Conceição o que ele próprio jamais pudera receber? Miguel gozava na carne macia, enquanto o rapaz despejava no mato - envergonhado! - o desejo que sentia pela irmã. Revolta.

(CONTINUA...)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O Assassinador (QUINTA PARTE)


O carro entrou à esquerda na rua Paraguai. Depois à direita na Rua Tenente Brito. Sem dificuldade logo alcançou a Avenida Gil Martins. Aqui é o Cidade Nova. Nós chega já. Chega já. Passearam pela Joca Broxado e Celso Pinheiro. Somente quando viraram à direita na rua Panamá, Maria Celeste compreendeu para onde estava sendo levada. Compreendeu também não se tratar de um assalto. Que bandido se daria ao trabalho de largar a vítima às margens de um rio?

(CONTINUA...)

domingo, 20 de janeiro de 2013

O Assassinador (QUARTA PARTE)


Conceição providenciou o enterro da mãe.  Tudo muito simples.Caixão doado pela prefeitura e sepultura emprestada. Crispim estivera sempre presente. Não desgrudava da barra da saia da irmã. Causou estranhamento a sua mudez. Ao lado da defunta, apenas suspirava. Sequer encarava aqueles que se aproximavam para cumprimentá-lo. Está sofrendo muito, o coitadinho!

Miguel, amancebo de Conceição, era agregado da chácara São Joaquim. Doutor Astrogildo praticamente não aparecia por lá. Comprou a propriedade porque é moda ter uma chácara na estrada de Altos. Por isso mesmo o casal vivia em paz. Sem patrão dando opinião, eram, na verdade, patrões deles mesmos.

Analfabeto, carinhoso e prestativo, Miguel ajudava Conceição em todos os afazeres. Quando a mulher comunicou que o irmão moraria com eles, o homem não deixou transparecer uma rusga sequer de descontentamento. Crispim é meu irmão também.

(CONTINUA...)

sábado, 19 de janeiro de 2013

O Assassinador (TERCEIRA PARTE)


Maria Celeste, aos trinta e cinco anos, ainda era virgem. Morava apenas com a mãe. O pai morreu quando a menina, aos oitos anos, foi atropelada por uma moto. Ao correr para o Getúlio Vargas - o coração numa disparada só -, Absalão desabaou ali mesmo na recepção do hospital.

Dona Joana jamais conversou com a filha a respeito da morte do marido. Mas Maria Celeste sabia que a mãe, em seu silêncio, encarava-a enquanto a única responsável pela tragédia. Afinal, quantas vezes fora alertada do perigo que era brincar na rua, correndo atrás de uma bola, cercada de pivetes. Por que não ficava quietinha em casa, com as suas bonecas, como faziam as meninas do bairro?

O problema é que desde então verificou-se no comportamento da pequena Maria um total abandono por toda e qualquer atitude estereotipada do comportamento feminino. Batons, esmaltes, vestidos e saias jamais fizeram parte da vida da empresária. Nem mesmo na adolescência. A menstruação - sangue maldito! - provocou na menina uma necessidade de isolamento tamanha que durante dez dias foi difícil convencê-la a sair de casa. Mais difícil ainda desprezar os boatos, espalhados pela vizinhança, a respeito da opção sexual da moça. 
Maria apenas sofria diante das preocupações de dona Joana. Essa gente não sabe de nada. Não entendem que não quero casar. Não percebem os plano. Se matei meu pai, preciso agora cuidar da minha mãe.

(CONTINUA...)

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O Assassinador (SEGUNDA PARTE)


Crispim assassinara a própria mãe. Cansado de trabalhar o dia inteiro catando sobras de comida no mercado da Piçarra, enquanto Das Dores chorava a fuga do marido, o menino de apenas catorze anos desferira-lhe repetidos golpes de martelo na cabeça. Depois fugiu para a chácara da irmã. Papai voltou! Papai matou a mamãe!

(CONTINUA...)

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O Assassinador (PRIMEIRA PARTE)


Meia-noite. Hora de voltar para a casa. A irmã acordada. Na sala. Impaciente. Meia-noite. Igual a tantas outras noites. Feito cobra arrastando-se pelas margens dos rios. Vez ou outra aqui. Vez ou outra acolá. Parnaíba. Poty. Até, finalmente, depois de visitar os mais diversos bairros da capital - os passeios estendiam-se durante todo o ano - deparar-se com o deslumbramento que era o encontro das águas. Parnaíba. Poty. Conceição. Os cotovelos no parapeito da janela. Encarando o portão de ferro. Sonhando com o gemido seco das dobradiças enferrujadas. Seria dali que o irmão, cúmplice da escuridão - maltrapilho, cansado, ensanguentado -, regressaria para o amor dos braços gordos, dos peitos enormes, das coxas macias.

Aquela semana não fora das melhores. Três mulheres. Apenas uma vítima. Há dez anos não eram tão espertas. Há dez anos mataria uma a cada dia se tivesse disposição para tanto. Imprudentes. Frágeis. Assustadas. A irmã alertava. Aconselhava. Toma cuidado, menino. Cria juízo, cão dos inferno. Mas assim, sem titubear, continuava matando, estuprando, esquartejando. Há dez anos. Tu ainda vai acabar sendo preso, criatura. Há dez anos. Deixa de conversa besta, Ceição. Quem é que me pega, quem é?

Aquela semana não fora das melhores. Maria José e Maria das Dores pressentiram o perigo. Em que vacilara? Passo em falso. Precipitação. Duas noites perdidas. Conceição nem perguntou nadinha de nada. Sabia que não havia remédio. Conhecia bem o irmão. Era conformar-se. Deitar-se na cama e dormir. Crispim descansaria mesmo no alpendre. Estirado na rede. Faminto. Envergonhado.

Maria Celeste não tivera a mesma sorte. Enquanto o portão automático deslizava pacientemente, a abordagem. Saíra tudo conforme o planejado. O desespero. A súplica. O dinheiro e o carro ofertados àquele deus de carne e osso. Dirige, dona Maria! Dirige que eu sei o que tô fazendo. A resignação.

(CONTINUA...)