Infância

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segunda-feira, 29 de maio de 2017

Falácias Intencionais



Muito já se escreveu a respeito da produção literária do prosador piauiense Orlando Geraldo Rego de Carvalho (1930-2013). Na tentativa de melhor compreendê-lo, pesquisadores chegaram mesmo a desnudar a intimidade do ficcionista oeirense. Obcecados em desconstruir, para depois reconstruir didaticamente, a angústia, o medo e a ansiedade, características tão presentes em suas personagens, esses mesmos estudiosos concentraram-se no autor, confundindo-o com o narrador, e decidiram primeiro analisar psicologicamente o próprio artista.
Considerada inacessível e até mesmo indesejável, a intenção do autor não deve ser utilizada como referência no momento de se julgar a eficiência de uma obra de arte literária. Compreendendo a intenção como mera pretensão de um escritor, não seria precipitado admitir o seu êxito apenas realizando uma espécie de adivinhação do que o artista sentia e pensava no momento da escritura? E mesmo havendo a possibilidade de se entrevistar qualquer escritor, não há garantias que ele tenha sido bem sucedido em sua intenção.
            Mesmo que estudos biográficos sejam pertinentes, um dos resultados, quando O. G. Rego de Carvalho é o autor em questão, é um desfile heterogêneo, algumas vezes irresponsável, das mais diversas abordagens psicológicas. Há pesquisas, por exemplo, que identificam que sua escrita não pode ser desvinculada das relações familiares. Por sua vez, Wintsatt; Beardsley (2002, p. 642) são coerentes ao alertar: “Devemos atribuir os pensamentos e atitudes do poema de imediato ao falante dramático e, se de algum modo ao autor, apenas por um ato de inferência biográfica”. Esclarecem assim que o texto, emancipado de seu escritor, também longe de pertencer ao crítico, é propriedade, em suas andanças pelo mundo, do público, que a acolhendo, certamente a perpetuará. Afinal, parafraseando os autores citados, a obra extrapola aspectos intrínsecos do escritor. No máximo, vislumbra-se uma afinidade entre autor e narrador:

O emprego da prova biográfica não precisa envolver a intencionalidade, porque, enquanto pode evidenciar aquilo que o autor pretendia, também pode evidenciar o significado de suas palavravas e o caráter dramático de uma elocução (WINTSATT; BEARDSLEY, 2002, p. 647).

  As atitudes do narrador não podem ser explicadas considerando-se a vida pessoal do autor, pois estaria, assim, arriscando-se o crítico a envolver-se em uma falácia intencional.
Faz-se necessário, então, compreender que Ulisses, narrador homoautodiegético de nível intradiegético de segundo grau, protagonista e herói da novela Ulisses entre o amor e a morte, e O. G. Rego de Carvalho não são a mesma pessoa, mesmo que tenham vivido nos mesmos lugares e passado por experiências afins.


REFERÊNCIAS:

CARVALHO, O. G. Rego de. Ulisses entre o amor e a morte. Teresina: Corisco, 1999.

WINTSATT, Willian Kurtz; BEARDSLEY, Moroe Curtis. A Falácia Intencional. Trad. Luíza Lobo. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da Literatura em suas fontes. Vol. 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 639-656.



Texto apresentado à disciplina Literatura: Perspectivas Críticas e Culturais, ministrada pela prof.ª Dr.ª Maria do Socorro Baptista Barbosa, Mestrado Acadêmico em Letras.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Ulisses



Resumo referente ao artigo Os elementos auto-representativos na novela Ulisses entre o amor e a morte, de O. G. Rego de Carvalho, que faz parte do livro Geografias Literárias: confrontos: o local e o nacional, organizado por Francisco Venceslau dos Santos, com a colaboração de Raimunda Celestina Mendes da Silva.


            O conceito de narração para uma obra fictícia extrapola a simples exposição, afinal envolve momentos interdependentes que são o começo, o meio e o fim, organizados pelo narrador, primeiro protagonista da comunicação literária. Na novela Ulisses entre o amor e a morte, de O. G. Rego de Carvalho, o discurso, em primeira pessoa com apoio na terceira do singular, é assumido pelo narrador de forma explícita. O ponto de vista é de um “eu” narrador homoautodiegético de nível intradiegético de segundo grau, misturando sensações presentes com um passado resgatado através de lembranças bem vívidas. Ulisses, o protagonista, é herói e narrador ao mesmo tempo, enquanto as cidades de Oeiras e Teresina funcionam como ponto de identificação tanto do espaço discursivo quanto do tema narrativo. A primeira parte da narrativa (infância) revela, através do discurso, o cotidiano do protagonista em Oeiras, enquanto a segunda parte (adolescência), apresenta acontecimentos não-habituais de uma vida nova em Teresina. O que se constata, independente do espaço geográfico, é que a descrição dos acontecimentos é uma projeção exterior do estado psicológico do narrador protagonista. Vale ressaltar que O. G. Rego de Carvalho utiliza-se de um narrador puro, consciente de que entre o mundo da realidade histórica e do imaginário há apenas analogias. Considerando o campo discursivo, destaca-se em Ulisses entre o amor e a morte, a linguagem, em padrão culto, e a estrutura bem curta dos capítulos. Pode-se afirmar que o sujeito do discurso produziu um texto que permite a mímese da representação, ao ativar os dois níveis do princípio mimético: recepção e produção. Ocorre, por exemplo, uma relação de verossimilhança com a realidade exterior do texto, quando Oeiras e Teresina operam como unidades pensáveis em uma realidade referencial, quando também o narrador constrói plasticamente uma cena através da representação verbal. O habitat natural do narrador assemelha-se à realidade exterior do texto, o que permite que o receptor identifique o modelo que está sendo utilizado. Se a realidade numa obra literária é a vida que o autor consegue captar e colocar à disposição do leitor, O. G. Rego de Carvalho assim a realiza por intermédio do sentimento de seus personagens, à medida que recria a geografia oeirense e teresinense, utilizando-se de sua real experiência de vida. Na novela ogerreguiana protagonista e leitor completam-se, o primeiro observando a realidade concreta, o segundo recebendo percepções dessa mesma realidade. Assim, em Ulisses entre o amor e a morte, o autor, ao privilegiar aspectos sociais e individuais, conduz, inevitavelmente, o leitor a uma reflexão a respeito dos assuntos abordados.

VIANA, Márcia Edilene Mauriz. Os elementos auto-representativos na novela Ulisses entre o amor e a morte, de O. G. Rego de Carvalho. In: SANTOS, Francisco Venceslau dos (Org.). Geografias Literárias: confrontos: o local e o nacional. Rio de Janeiro: Editora Caetés, 2003. p. 33-55.

Texto apresentado à disciplina Metodologia da Pesquisa em Literatura, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Raimunda Celestina Mendes da Silva, Mestrado Acadêmico em Letras, UESPI.


quinta-feira, 18 de maio de 2017

1,99 – Um supermercado que vende palavras



Logo no início do filme de Marcelo Masagão, deparamo-nos com uma personagem empurrando um carrinho de supermercado. É possível perceber também produtos, identificados por palavras ou números, dispostos em prateleiras. Ora, o carrinho, os produtos e as prateleiras combinados - ícones organizados por similaridade - remetem-nos imediatamente ao título da produção cinematográfica: 1,99 – um supermercado que vende palavras.

Há uma nítida transposição de conceitos e caracteres denotativos e conotativos - tão familiares à linguística - para o cinema, enquanto sistema de signos. Mas também há, por parte do roteirista e do diretor, a consciência da importante ligação entre as linguagens verbal e não verbal, e uma nítida valorização do representante, quando instigam o público, no processo de compreensão da obra, a romper com a dualidade significante/significado.

Aquele supermercado não é qualquer supermercado. Ele vende palavras. E não são as palavras símbolos autênticos? Por isso mesmo, nos primeiros minutos do filme, o público, antes de acomodar-se diante da obra, passeará pelo fenômeno das categorias peirceanas, sejam elas: primeiridade, secundidade e terceiridade, compreendendo assim que a construção da interpretação, longe de ser arbitrária, é racional e dialética.

O leitor incapaz de identificar imagem e diagrama, subclasses peirceanas do ícone, no filme de Masagão, não estabelecendo assim uma relação entre significante e significado e seus respectivos desdobramentos conotativos, dificilmente compreenderá quem são – ou o que representam – aquelas pessoas cercadas de pneus velhos em um depósito carente de palavras, para citar apenas um exemplo.

Assista ao filme:

https://www.youtube.com/watch?v=vSmuy5ZHBlU&list=PL62B784873F936B8F

Texto apresentado à disciplina Semiótica da Cultura, ministrada pelo Prof.º Dr.º Feliciano José B. Filho, Mestrado Acadêmico em Letras, UESPI.


domingo, 7 de maio de 2017

A Terceira Margem do Rio



O título do conto de Guimarães Rosa já provoca certo estranhamento. O que seria essa fantástica terceira margem? Considerando-se signo a substituição ou representação de uma coisa por outra, em que consistirá aquela metáfora? Será o pai, homem quieto, levando ao extremo o isolamento? Ou o próprio rio naquele pedaço de substância que não chega a tocar as margens direita ou esquerda? O que substitui o quê?

Para melhor organizar a breve análise que em momento algum pretenderá alcançar a irrelevante intenção do autor, valho-me da seguinte afirmativa de Paul Válery: “Não há verdadeiro sentido de um texto”, para logo em seguida, dessa vez citando Todorov, “O autor entra com as palavras e o leitor com o sentido”, ratificar a ideia de que a infinitude de significados de um texto não resultará, sobremaneira, em interpretações medíocres.

Os signos como passam a ser trabalhados pelo autor, numa combinação inédita, lançam um novo signo: pai e rio tornam-se uma outra coisa, provocando assim uma necessidade de estudo e compreensão daquela nova verdade, até - parafraseando Jung - tornar-se familiar demais, perdendo assim todo o mistério. Quando, finalmente deixaremos Guimarães Rosa em paz, um homem dentro de uma canoa em um rio será apenas um homem dentro de uma canoa em um rio.


Texto apresentado à disciplina Semiótica da Cultura, ministrada pelo Prof.º Dr.º Feliciano José B. Filho, Mestrado Acadêmico em Letras, UESPI.