Meu pai esquecera-se de muitas
coisas nos últimos dias. Esquecera-se ou não dava mais um tiquinho de
importância sequer. De três assuntos lembrava-se bem: fazer a barba, jogar na
loteria e o seu nome completo. Sempre que alguém lhe perguntava a alcunha,
feito aquela criança obediente e orgulhosa de ser o orgulho da família, ele
respondia: Edimar Pacheco da Silva. Nas duas semanas em que esteve internado no
hospital da Primavera, apresentava-se como Edimar Pacheco da Silva, o seu
candidato. Por algum motivo - apenas suponho compreender - interessara-se pela
política desde que dera entrada naquela enfermaria.
Já
no apartamento, vivia a perguntar até quando ficaria hospitalizado. O colchão
de ar, os medicamentos, os curativos, as fraldas, as chuveiradas na cadeira de
banho e a alimentação balanceada correspondiam a uma rotina que distorcia a sua
percepção do ambiente em que se encontrava. A mente engabelava tempo e espaço.
Lagoa dos Porcos, Parnaíba e Teresina eram o mesmo povoado. Amigos e parentes, todos
vizinhos. Em algumas tardes, após visitar os irmãos e o sobrinho Luís José
(Lagoa do Porcos), passava pela casa do meu padrinho (Parnaíba) e somente
descansava – minutos depois - quando deitava-se em sua cama, após o caldinho de
feijão (Teresina). Por mais que variássemos os ingredientes, papai somente
devorava a sopa se concordássemos que era mesmo caldo de feijão.
O
Parkinson enrijecera-lhe os músculos. Também lhe apresentou à depressão e
desencadeou uma série de alucinações. O emagrecimento e os tremores na cabeça,
nos braços e nas pernas agravavam-se a cada dia. O falecimento de mamãe –
casamento de 42 anos -, no dia 5 de janeiro de 2014, pode ser encarado como o
último golpe tolerado pelo meu pai. Tolerou, mas não suportou. Um ano e sete
meses depois, no aniversário de Parnaíba, às onze horas e cinquenta minutos,
fora declarado morto pelo médico do SAMU que o assistiu.
Seu
Edimar traspassou como sempre viveu. Tranquilo. Discreto. Sem nenhum tumulto.
Não respondeu quando lhe pedi a benção. Apenas olhou para mim enquanto segurava
com a mão direita a minha mão direita. Não conseguiu apertá-la como sempre
fazia. Os dedos levezinhos, levezinhos. Percebi que a respiração cessara quando
um vento moleque, impregnado de vida, invadiu o quarto e carregou a alma de papai.
Lá fora os moleques empinavam pipas. Eram muitas as pipas. Mesmo assim, foi
facilzinho distinguir, naquela confusão de cores, o sorriso de meus pais, no
azulzinho do céu.
Teresina, 17 de agosto de 2015,
21h10