Infância

Infância

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Contagem Regressiva




Jeosá repousa sobre o tapete encardido da sala de jantar. Gatos gemem gemidos de prazer no maltratado jardim das flores mortas. Garfos e facas e pratos nervosos tilintam-tilintam-tilintam anunciando o passeio das almas.

Nem mesmo o desespero era capaz de aplacar a fome daquela mulher. Nem mesmo a estante (presente que dera ao filho) carregada de fracassos-troféus. A mãe de Jeosá devorava a carne e o arroz e o feijão como alguém que seria capaz de devorar a si mesmo. Esboçará algum esboço de reação ao encontrar a espingarda de canos duplos paralelos? Ao perceber o filho mergulhado na cama-piscina, afogado no próprio sangue?

Em algumas horas o professor de literatura estará no quarto. Sentadinho entre o guarda-roupa e a escrivaninha. Curtindo a derradeira noite. Aguardando a derradeira manhã. As velas. Oito olhos de escuridão. A espingarda de canos duplos paralelos. Tudo ajustadinho. Aquele crime perfeito que não fora elaborado até então.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Fascinação


Ébrio de febre
O poeta padece

E desce

Assustado

Encantado

Cansado

Entorpecido

Pelo torpe veneno

Torpedo obsceno

Daquela mulher

Melhor seria

(para o poeta)

Apenas olvidar
Não dar ouvidos
Aposentar a pena
Sequer enxergar
A triste lamúria

Gemidos de luxúria

Daquela mulher.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O Concílio dos Deuses


O Parvo

Não incomodaremos as Tágides do Rio Tejo. Nem sujeitaremos à apreciação de Calíope a nobreza de tal projeto. Que repousem na precipitação do devaneio todas a ninfas. Não há inspiração nos bosques. As florestas e as montanhas já não fertilizam a poesia. As NOIVAS e os BOTÕES DE ROSA não desabrocham mais. O que há de concreto é o concreto. Nenhuma plantinha desafiando o asfalto. Nada de gnomos ou duendes nos remetendo ao sonho. Nada de nada. Apenas a IDEIA, o CONCEITO e o NÚMERO. Apenas o SER CAPAZ DE. Apenas a insônia e a incerteza da conquista. Oh, IDEIA! Oh, CONCEITO! Oh, NÚMERO! Libertem-nos do cansaço que destrói o raciocínio. Da indolência traiçoeira e vulgar. Da inveja tão certa, como é certo o medo de errar. Oh, IDEIA! Oh, CONCEITO! Oh, NÚMERO! O fracasso sustenta a ociosidade. O fracasso ratifica o comodismo. O fracasso alimenta o desejar nada fazer. Oh, IDEIA! Oh, CONCEITO! Oh, NÚMERO! Desatem as paredes feito nós do labirinto. Envolvam-nos de inteligência e competência, para que as palavras, ferros em brasa, não calem tão humildes narradores.


TRECHO DA OBRA O CONCÍLIO DOS DEUSES, DE AJOSÉ FONTINELLE.

sábado, 22 de outubro de 2011

Da infância


Jeosá é o menino que brincava menino na época de eu menino. Jeosá e sua espingarda de canos duplos paralelos. Jeosá suicídio. Jeosá resquício de memória - lembrança distorcida de uma pseudoinfânciafeliz. Cadê meu filhote lindo chamado Dedé? Estou aqui, minha mãe. Arrebentado. Chorando espectros de lágrima. Arrependido de estar machucado e de não poder desfrutar daquele carinho gratuito – espécie de bônus por não ter aprontado deveras tanto quanto deveria.

Quando a Monareta sobrevoou o calçamento, arremessando Jeosá e o que ainda havia de esperança em Jeosá, a consciência da efemeridade do ser e das coisas e de um presente de aniversário configurou-se tatuagem em meu estômago rubro. O sangue-insônia era o sangue derramado pelos meus pais. A bicicleta-troféu não era prêmio. Era sacrifício. Agora disforme. Tal qual a alma de Jeosá.

A alma de Jeosá é uma bicicleta cuja roda dianteira não é mais capaz de rodar.

domingo, 16 de outubro de 2011

Por que mataram Fernanda Lages?


Sir. Artur Conan Doyle e Edgar Allan Poe já se encontram em Teresina, capital do Piauí. Holmes e Dupin acompanham seus respectivos criadores. Garantem esclarecer o assassinato da estudante Fernanda Lages. O que não podem garantir é que seus métodos dedutivos também sejam capazes de contornar a politicagem piauiense purulenta, prendendo, finalmente, os responsáveis pelo homicídio.

Em entrevista coletiva, ainda no aeroporto, os investigadores desabafaram. Não somos bem vindos. Não estamos sendo pagos por ninguém. O que nos move é o prazer da descoberta - a solução de mais um mistério.

Enquanto espectador dessa novela policial, resta-me aguardar e torcer para que a ficção seja, mais uma vez, capaz de encarar, incomodar e desmascarar a realidade.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O sangue que suga


nesta cidade
nesta idade
necessidade
de

través
através

vez
ou
outra

outorgar
a outrem

a capacidade

de
ser
feliz.



sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Fênix


Ah, se aquela nave

Ave doida

Doída

Sentida

Sentinela dos céus

Perdoasse o poeta

Profeta de si mesmo

Ou mesmo o infame exegeta

Da sarjeta habitante

Distante de ter sido

O tecido macio

O macho no cio

Cioso e inúbil.