A
José Afonso de Araújo Lima
20h05
Teatro vazio. Contração facial. Dentes triturando dentes. Língua pressionada
contra a abóbada palatina.
Teatro vazio. Taquicardia. Sangue cavalgando velozmente em sentido contrário,
dos ventrículos para os átrios. Câmaras cardíacas contraindo-se e se dilatando,
alternadamente, 140 vezes por minuto.
Teatro vazio. Cefaleia. Trombose venal. Prodigiosa pressão intracraniana.
Sombras, tal qual fantasmas, invadindo o palco. Braços e pernas indolentes. Inchaço
cerebral. Sangue umedecendo o subaracnóide.
Teatro vazio. Onde a família? Onde os amigos? Onde o burburinho de quando
rebenta a fatídica notícia? Onde o vinho de outrora? Onde os cupins em guerra? Onde o
itararé dos desvalidos?
Teatro vazio. Pedro II banhada em estranha substância aquosa alcalina. Quatro
de setembro maçante. O badaladal de São Benedito é presságio. Há uma tintura preta
anuviando a escola de Gomes Campos. De um extraordinário mastro de cocanha
principia uma lona encarnada. Ao meio-dia é toda a gente vermelha. De uma
vermelhidão sobrenatural. Um deslumbramento só. Teresina tenebrosa.
Teatro Vazio. Os refletores não ardem. Proscênio precipício. No auditório, aos
pares, criaturas xipófagas protagonizam o maravilhoso descuido da criação. Quem
parasita de quem? Aleijados, estropiados de toda natureza de imperfeição, amaldiçoam
as negligências do criador.
Teatro vazio. As águas do Parnaíba invadem o camarim principal. A maquiagem
rubra agora é sangue esquivo – avançando violentamente. Em poucos minutos, umidade
em todas os catinhos do complexo cultural.
Teatro vazio. Aeroporto interditado. Magníficas nuvens derramadeiras repousam,
há sete horas, sobre a pista de rolamento. Entre um clarão e outro a excêntrica ausência
de trovão.
Teatro vazio. Cidade vazia. A gente vazia. Cristais de gelo oprimem o Troca
troca. A prefeitura, engolida por uma cratera, é apenas vestígio. Na Praça Marechal
Deodoro da Fonseca há uma bandeira diáfana e tímida desafiando a inexistência deZéfiro. O marco zero, cravado por Saraiva em 1850, assiste ao espetáculo de sons, cores,
perfumes e dor. Prostitutas, sibilas e mendigos amaldiçoam Nossa Senhora do Amparo.
21h04
Hospital Getúlio Vargas. Lamentações. Súplicas. Aflição. O pesadelo é
substituído pelo pesadelo. Jeosá desmaiara nos primeiros minutos do espetáculo. Meses
de ensaio. Correria-correria danada. Despertara na enfermaria. De instante em instante
recebia a visita de uma sombra. Um gigante quietinho diante da cama. Sentia-lhe as
mãos passeando pelo corpo. A angústia, substituída pelo prazer, era drenada pela
criatura. Por mais que se esforçasse, tornava-se impossível para o artista identificar o
benfeitor. O borrão de gente entrava e saía do quarto quando bem entendia. Nenhuma
palavra. Apenas o toque generoso. A calmaria que o acompanhava sempre.
Naqueles momentos lembrava-se de sua primeira visita ao Teatro do Boi.
Assistira, na ocasião, ao espetáculo A Guerra dos Cupins. Antigo matadouro municipal,
o prédio fora construído em 1928. Anfrísio Lobão era o prefeito de Teresina, na época.
A carnificina substituída, 59 anos depois, por oficinas, cursos e apresentações das mais
diversas manifestações artísticas, ainda nos envolvia a todos, enquanto apanhadores do
sangue e da dor de tantos bichos sacrificados ali.
Estreara, aos 16 anos, naquele palco italiano. 34 espectadores dispersos no
auditório. A capacidade era para 160 pessoas. Shakespeare não era muito cultuado na
zona norte. Flamengo versus River em vez de Hamlet, o príncipe dinamarquês. "Tem
cuidado em não entrar em uma briga, mas uma vez nela, faze tudo para que teu
adversário sinta temor". Naquela noite enfrentamos o futebol. Perdemos feio. “Ser ou
não ser... Eis a questão”. Logo na primeira cena, do terceiro ato, o Flamengo decidiu a
partida. O dramaturgo inglês abatido por sinais eletromagnéticos decodificados pelo
receptor de um quadragenário rádio capelinha. Quando Zé Libório, vigia do
estabelecimento teatral, como ele mesmo gostava de ser chamado, anunciou a gojoba, a
plateia, desanimada e abatida, renasceu aos berros de é gol, é gol. "O resto é Silêncio".
22h03
Xerostomia. Queimação na boca. Lábios rachados. Língua áspera. Náusea.
Desequilíbrio. Vertigem. Atordoamento. Hipotensão ortostática. Escuridão.
Jeosá nasceu na Arlindo Nogueira. Pertinho da Miguel Rosa. Tiradentes,
Clodoaldo Freitas, Campos Sales, Arêa Leão, Benjamim Constant e Anísio de Abreuforam testemunhas de inúmeras traquinagens. Pega-pega. Pau de bosta. Polícia e ladrão.
Caveira. Bandeira. Queima. Esconde-esconde.
Aos 12 anos, interessou-se pelo cinema. Os amigos reuniam-se, aos sábados, na
casa de Denílson. Patinha, assim era conhecido o filho do deputado, ganhara
recentemente um videocassete. Cinco meses depois, financiados pelo dinheiro público,
já produziam os próprios vídeos. Os cenários eram sempre as praças da capital. João
Luis Ferreira. Pedro II. Rio Branco. Saraiva. Bandeira. Landri Sales. Da Costa e Silva.
Os enredos, uma trapalhada mambembe de filmes norte-americanos e europeus.
Dormência. Repouso. Quietação. Bradicardia. Incontinência urinária.
Incontinência fecal. Esfíncteres ineficientes. Uma fetidez danada. Um constrangimento
só. Excrementos encharcando a brancura dos lençóis.
No Teatro de Arena, Jeosá interpretou Crispim. Cabeça de Cuia. Protagonista de
O pescador e o rio, de Gomes Campos. O drama do menino pobre, incapaz de pescar
um peixe sequer, impressionava. O assassinato da própria mãe não justificava a
maldição. Parnaíba. Sete Marias virgens. Canoas emborcadas. Poti. O homem feito
monstro. Destruíra, fatalmente, a mãe-boa, inocente dos abusos da mãe-má.
O gigante tornara à cabeceira da cama. Mãos invisíveis massageavam os ombros
de Jeosá. O mau cheiro substituído pela combinação do aroma de todas as artes.
Finalmente a claridade atingira o corpo do ator. Onde anteriormente cortinas, agora luz.
Sentira-se renovado. Acreditara ser possível sentar-se. Até mesmo caminhar pelo quarto.
Quem sabe desbravar cada aposento do maior hospital público do Piauí.
23h02
Apenas um corredor. Levaria 59 minutos para percorrê-lo. E no corredor,
dispostas de forma assimétrica, sete portas. 106. 205. 304. 403. 502. 601. 700.
Ao aproximar-se do primeiro cômodo, uma quentura atingiu-lhe em cheio.
Distinguia gemidos e imprecações. Naquele quarto habitavam queimados de toda
espécie de danação.
Logo adiante, no 205, o silêncio era constrangedor. Gonorreia. Cancro duro.
Cancro mole. AIDS. Infecção por clamídia. Pediculose do púbis. Herpes genital.
O quarto 304, reservado para os suicidas, estava lacrado. Impossível visitá-los.
Consolá-los. O trinco fora arrancado. Os amaldiçoados agrediam, inutilmente, a madeira
maciça da porta.Havia grades nas janelas do 403. Homens e mulheres nus, amarrados uns aos
outros, debatiam-se insanos. As cabeças raspadas espelhavam o incômodo da posição.
Assaltantes. Assassinos. Estupradores. Corruptos. O humor aquoso produzido pelas
glândulas sudoríparas era uma expiação.
Os adúlteros aguardavam no quarto seguinte. Machos de um lado. Fêmeas do
outro. Genitálias trucidadas. Bocas costuradas. Olhos esbugalhados. Encaravam,
atônitos, o sofrimento alheio. Resignação.
Há alguns metros do 601, uma surpresa. Bloqueando o corredor havia um padre.
O religioso segurava com a mão direita a própria cabeça. Desligada do restante do corpo,
a cabeçorra fitava o jovem artista. Aterrorizado, tamanha era a serenidade de Jeosá, o
presbítero recuou, para logo em seguida desaparecer.
Os dois últimos quartos abrigavam mentirosos e invejosos. Assim mesmo
confundidos. Difícil identificar quem era quem. Esfaqueados, despejavam sangue por
onde passavam. Ocupavam-se em lambuzar o rosto e o corpo dos companheiros. Sequer
perceberam a presença do ator.
00h00
Jeosá não resistiu ao acidente vascular cerebral. A ruptura de um vaso sanguíneo
intracraniano matou-o três horas e 55 minutos após o desmaio. Mal tivera tempo de ser
examinado. Deixara no Teatro João Paulo II, uma plateia assustada. Não pagaram para
assistir ao espetáculo da morte de um ator. Alguns ainda permaneceram na calçada do
teatro. Aguardavam notícias. Muitos, acompanhando o elenco, lotaram o saguão do
HUT. Encaminhado para o Getúlio Vargas, Jeosá vagou inconsciente pelos traumas e
medos e frustrações que acompanham a humanidade. Encaminhado para o Getúlio
Vargas, Jeosá conheceu um pouquinho do Céu e do Inferno. Enfrentou a Morte,
enquanto a Sombra Fabulosa massageava-lhe a matéria.