Infância

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terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Crônica do Primavera



Cebola chegou “tocando terror”. Aos 56 anos mais parecia o Sméagol, de O Senhor dos Anéis (os fãs de Tolkien ficariam impressionados com a semelhança). A magreza excessiva camuflava a força sobrenatural concentrada em seus braços. Olhava para lugar nenhum. Gritava onomatopeias. E para deixar claro que ainda controlava a própria existência arrancava vez ou outra a sonda nasogástrica. Também era recordista em cuspe a distância e especialista em desatar os nós que aprisionavam o corpo inquieto.

Cebola – não fomos capazes de alcançar o seu verdadeiro nome – morou os últimos três anos em um abrigo para mendigos. O funcionário que o acompanhava descrevia-o, achando tudo muito engraçado, como uma pessoa agressiva e propensa a certos abusos de ordem sexual. O rapaz adorava quando Cebola ameaçava-o, estendendo a mão direita, como se empunhasse um revólver. A certeza de que na cama 3 havia um pistoleiro tarado ensandecido deixou-nos bastante preocupados. Apenas papai dormiu naquela noite. Edilson – o paciente da cama 1 – e eu jogamos Uno até as cinco da manhã.

Cebola, cada vez mais traquinas, estabeleceu o caos na enfermaria 2. Não se calava sequer um instante. Há uma semana acompanhando meu pai, não tivemos manhã mais agitada. Papai, sempre afeito à tranquilidade, apenas resmungava, enquanto Edilson e eu colocávamos em prática o plano cruel elaborado durante a madrugada: despejaríamos o coitado do Cebola.

Graças à complacência da enfermeira de plantão e a uma vaga que surgiu na enfermaria 4, livramo-nos do Cebola. Triste sina a sina desse homem, murmurou meu pai. Edilson, reprimindo o riso e a dor abdominal, acrescentou: O cara conseguiu ser expulso de uma cama de hospital. Eu, antecipando faíscas e estrondos, somente pensava em colheitas e plantações.

            

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

De como meu pai reencontrou a minha mãe




Meu pai esquecera-se de muitas coisas nos últimos dias. Esquecera-se ou não dava mais um tiquinho de importância sequer. De três assuntos lembrava-se bem: fazer a barba, jogar na loteria e o seu nome completo. Sempre que alguém lhe perguntava a alcunha, feito aquela criança obediente e orgulhosa de ser o orgulho da família, ele respondia: Edimar Pacheco da Silva. Nas duas semanas em que esteve internado no hospital da Primavera, apresentava-se como Edimar Pacheco da Silva, o seu candidato. Por algum motivo - apenas suponho compreender - interessara-se pela política desde que dera entrada naquela enfermaria.


Já no apartamento, vivia a perguntar até quando ficaria hospitalizado. O colchão de ar, os medicamentos, os curativos, as fraldas, as chuveiradas na cadeira de banho e a alimentação balanceada correspondiam a uma rotina que distorcia a sua percepção do ambiente em que se encontrava. A mente engabelava tempo e espaço. Lagoa dos Porcos, Parnaíba e Teresina eram o mesmo povoado. Amigos e parentes, todos vizinhos. Em algumas tardes, após visitar os irmãos e o sobrinho Luís José (Lagoa do Porcos), passava pela casa do meu padrinho (Parnaíba) e somente descansava – minutos depois - quando deitava-se em sua cama, após o caldinho de feijão (Teresina). Por mais que variássemos os ingredientes, papai somente devorava a sopa se concordássemos que era mesmo caldo de feijão.

O Parkinson enrijecera-lhe os músculos. Também lhe apresentou à depressão e desencadeou uma série de alucinações. O emagrecimento e os tremores na cabeça, nos braços e nas pernas agravavam-se a cada dia. O falecimento de mamãe – casamento de 42 anos -, no dia 5 de janeiro de 2014, pode ser encarado como o último golpe tolerado pelo meu pai. Tolerou, mas não suportou. Um ano e sete meses depois, no aniversário de Parnaíba, às onze horas e cinquenta minutos, fora declarado morto pelo médico do SAMU que o assistiu.

Seu Edimar traspassou como sempre viveu. Tranquilo. Discreto. Sem nenhum tumulto. Não respondeu quando lhe pedi a benção. Apenas olhou para mim enquanto segurava com a mão direita a minha mão direita. Não conseguiu apertá-la como sempre fazia. Os dedos levezinhos, levezinhos. Percebi que a respiração cessara quando um vento moleque, impregnado de vida, invadiu o quarto e carregou a alma de papai. Lá fora os moleques empinavam pipas. Eram muitas as pipas. Mesmo assim, foi facilzinho distinguir, naquela confusão de cores, o sorriso de meus pais, no azulzinho do céu.



Teresina, 17 de agosto de 2015, 21h10

domingo, 19 de abril de 2015

DOR QUE DESATINA SEM DOER



Naquela noite a poesia não veio. Camões sentou-se na calçada fria do cemitério em chamas. Observou, através do portão enferrujado, os defuntos correndo entre as covas, brincando de vida. Angustiado, afinal perdera o bem mais precioso em um sonho maluco, prometeu a si mesmo não mais se apaixonar. Amaldiçoou o coração e desejou jamais ter conhecido a língua portuguesa.