Infância

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domingo, 30 de março de 2008

Desacerto


Jeosá esteve cansado durante a vida inteira esteve cansado.

Jeosá resmungou e praguejou durante a vida inteira resmungou e praguejou. Jeosá sonhou e lutou e sofreu durante a vida inteira sonhou e lutou e sofreu. Jeosá também amou e acreditou e dançou durante a vida inteira amou e acreditou e dançou.

Ao abocanhar a espingarda de canos duplos paralelos não pensou em outra coisa que não fosse o maravilhoso espetáculo da libertação. Pela primeira vez deleitava-se com o gozo do gozo de que tanto ouvira falar. Todo o seu corpo estremecia feito arrepio enrugando-lhe a alma. Feito chocolate liquefeito na boca. Feito o prazer, enquanto pulsão, contorcendo-se na alma.

Por alguns instantes vacilou. Apertar o gatilho significava abdicar do encantamento que desfrutava e que imaginava não ser mais possível sentir. Ao mesmo tempo, sufocado pelas paredes amarelas do quarto e pelas lembranças que não o abandonavam jamais, sabia que a angústia permaneceria ao seu lado quando a realidade agredisse a porta daquela prisão: Jeosá ainda vive?

A possibilidade de resposta seria uma derrota. Sim. Estou. Vivo. Uma maldição. O que de pior pode acontecer ao encarcerado durante uma tentativa de fuga? Ser capturado quando já se vislumbra a claridade não fazia parte do plano. Jeosá ainda vive? Sim. Estou. Vivo. Frustração. Rastejar pela umidade do túnel e não colher os frutos da putrefação.

Jeosá ainda vive? Silêncio. Jeosá ainda vive? Sossego. Nem mesmo a mãe pôde gritar - sufocada pela paz que envolvia o cadáver do professor. Encarou o sangue. A morte. Encarou o filho. Agora que Jeosá já não tinha olhos pôde contemplá-lo como nunca fora capaz de fazer. Pôde beijá-lo e experimentar o sangue escorrendo pela garganta. Era Jeosá retornando para o caos de onde nunca deveria ter saído.

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