Infância

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quarta-feira, 14 de março de 2007

Complexo de Jeosá




Jeosá nem mais sabia o que fazer. Ou mesmo o que fizera. Seria uma maldição? Não mais os olhos castanhos encarariam os olhos castanhos? Como é possível – terror! – enxergar cabelos, pescoço, mãos, braços, tórax e não descobrir um reflexo sequer do próprio rosto?

Fazia dois dias desde a última vez em que considerara a vida um maravilhoso passeio de aqui e acolá. Chegara a cogitar a possibilidade de um desvio da luz – um grau que fosse! – provocando caos em todos os espelhos do mundo. Bobagem. Se todos os rostos refletidos ali. Se apenas o seu desaparecera feito a sombra traquinas de Peter Pan.

O mais curioso é que os outros, cujos rostos enxergava muito bem, também enxergavam o seu rosto. Sabia disso porque a mãe preparou-lhe o café praguejando como todos os dias de todos os anos. Porque no ônibus ninguém colaborou para que descesse tranqüilamente. Porque na escola os alunos não interromperam a bagunça e a coordenadora cobrou as notas da prova de literatura. Mas então o quê?

Alimentava-se numa boa. Escovava os dentes sem nenhum problema. Penteava os cabelos. Ajeitava as sobrancelhas. Coçava o nariz. Tudo como antigamente. Desde que não houvesse uma superfície refletora por perto lhe anunciando o vazio. A escuridão. Chegara a exagerar nas caretas diante do espelho. Abria e fechava a boca. Dentes expostos. Língua nos lábios e no céu da boca e nos próprios dentes. Mas a imagem não se comovia. Insistia em permanecer ausente.

O corpo do professor foi encontrado às dez da manhã. Sobre a cama uma espingarda de canos duplos paralelos. De terno preto e gravata preta e sapatos pretos arrumara-se para o suicídio. Com o disparo, a cabeça explodiu. Estourou. Expluiu. A mãe não conteve o desespero: onde foi parar o rosto de Jeosá?

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